O Peninha foi ver os palácios de Catarina, a Grande, quando estávamos na Rússia. Caminhou com reverência por aqueles salões resplandecentes, maravilhou-se com o luxo que um dia cercou os czares. Depois, visitou-me aqui, na Nova Inglaterra, e deslocou-se cerca de 40 quilômetros em direção ao famoso Lago Walden só para entrar na réplica da cabana onde viveu o escritor Thoreau.
A cabana americana é em tudo o oposto ao palácio russo. É simples, básica, tanto que se tornou uma espécie de símbolo da ecologia e da vida em contato com a natureza. Mas é também limpa, bem cuidada e bastante frequentada pelos muitos admiradores deste filófoso que inspirou Ghandi, Luther King e Mandela.
São interessantes essas incursões do Peninha por locações históricas. Porém, são fáceis e até óbvias. O que ele realmente devia fazer, o que precisa fazer agora mesmo é ir ao Cemitério dos Anjos. É um desafio que lhe lanço de público, como se o esbofeteasse com luva branca de pelica.
O Cemitério dos Anjos fica perto de Bagé. É acessado por estradinha de terra e está incrustado em uma propriedade particular. É um lugar abandonado e sinistro, habitado por cobras traiçoeiras e almas ressentidas. Lá está enterrado Adão Latorre, O Degolador.
Tenho agora de fazer uma pausa a fim de explicar por que estou falando de Latorre. É por causa de algo que disse o Potter. Ontem, durante o Timeline, da Gaúcha, o Potter comentou sobre o podcast que ele, o Scola e o Magro Lima gravam, intitulado “Era Uma Vez no Oeste”.
Ouvi o podcast. É uma das melhores coisas que vêm sendo feitas no Rio Grande do Sul, tanto quanto os vídeos de história do Peninha. Estou dando um presente a você, que não assistiu aos vídeos nem ouviu o podcast. Faça isso, você vai me agradecer. São duas pequenas obras-primas.
Nesse podcast citado pelo Potter eles discorrem a respeito do “xibolet”. Trata-se de um termo que se origina de uma história contada no livro dos Juízes, da Bíblia. As tribos semitas de Efraim e Galaad estavam em guerra. Galaad venceu e seus homens cercaram as vaus do Rio Jordão, que davam acesso a Efraim. Quando alguém tentava atravessar o rio, os soldados perguntavam:
— És de Galaad?
É evidente que todos respondiam que sim. Então, os soldados mandavam que o homem falasse a palavra “xibolet”, que significa “torrente de água”. Ocorre que o xis não existia na língua dos efraimitas. Assim, se o detido falasse “sibolet”, e não “xibolet”, era imediatamente degolado. A Bíblia informa que 42 mil homens morreram desta forma, às margens do rio Jordão. Obviamente, um exagero da Bíblia, mas a Bíblia pode.
Agora, volto a Adão Latorre. O Degolador.
Latorre era um negro uruguaio que se radicou em Bagé. Foi tenente-coronel dos maragatos que lutaram na revolução de 1893, a mais sangrenta da história do Brasil. Morreram pelo menos 10 mil homens nessa guerra, mais de mil por meio da degola, método rápido, silencioso e barato de eliminar uma pessoa indesejada. Latorre foi o campeão desse tipo de execução. Ele fazia o prisioneiro se ajoelhar e se postava às suas costas. Em seguida, puxava da adaga, que tinha uma lâmina afiadíssima, com 15 centímetros de comprimento, e a encaixava sob as narinas do desgraçado. Para não ter o nariz cortado, o homem erguia o queixo o máximo que podia. Do que Latorre se aproveitava, enfiando-lhe a faca no pescoço e rasgando-lhe a carne de orelha a orelha. A vítima soltava um grunhido horrendo e desabava. Em segundos, estava inconsciente. Em minutos, morta.
Pois Latorre também usava um xibolet. Mais do que um: três. Quando capturava alguém suspeito de ser inimigo, mandava que o homem dissesse “jota”, “pauzinho” ou “joão”. Se o detido pronunciasse “rota”, “paucinho” ou “xoaón”, estava provado: era uruguaio. Ia para a degola.
Alguns dizem que Latorre, em uma única noite, degolou 300 inimigos. Outros garantem que foram apenas 34 (ufa!). Para uns, Adão Latorre foi herói; para outros, bandido. De qualquer modo, é um personagem da história do país e, só por isso, merecia livros, filmes, seriados na Globo e vídeos do Peninha. Merecia, também, a atenção do Estado do Rio Grande do Sul. Não pelo que ele fez, mas pelo que foi feito na época em que viveu. Mas isso, parece, não haverá. A lápide de seu túmulo está miseravelmente quebrada, o cemitério está tristemente abandonado, e não é por acaso que emprego esses advérbios. É por lamento. Porque miserável e triste é a nação que não preserva sua própria história.