A verdade é que a vida não tem importância nenhuma. A vida não vale nada. Pense no leão e no gnu, que, a esta hora, estão errando por algum naco da savana africana. O leão e suas leoas avistam uma manada de gnus e atacam. Os gnus correm, mas um filhotinho, com suas pernas curtas, fica para trás. E se torna o alvo dos leões. Sua mãe percebe que ele será alcançado, mas sabe que, se se detiver para tentar defendê-lo, ela também será devorada. Então, escapa junto com o resto da manada, ao mesmo tempo em que as leoas pulam sobre sua cria. À distância, a mãe gnu ainda ouve os berros desesperados do filhotinho enquanto ele é estraçalhado pelas presas das feras.
Não há maldade envolvida nesse processo, mas, certamente, há desespero, ainda que, depois, sobrevenha a aceitação. Ninguém jamais descobrirá se a mãe gnu ficou traumatizada com o fim trágico do seu filhote. Quem se interessaria por isso? Ela não fala. Ela não pode reclamar. Nós nos conformamos, damos de ombros e explicamos, para quem se choca: “É a lei da natureza”.
Mas nós, Homo sapiens, acreditamos que somos diferentes da natureza selvagem. De uns tempos para cá, coisa recente, não mais do que 10 mil ou 12 mil anos, passamos a inventar leis para burlar a lei da natureza que permite ao leão matar o gnu. Essa lei natural, nós sabemos, é a do mais forte. As nossas leis tentam, exatamente, impedir que o mais forte submeta o mais fraco. Nossa angústia é fazer com que, entre nós, no recôndito da sociedade, vigore uma justiça que não é conhecida na natureza. Nós queremos que a vida tenha importância, afinal.
Temos trabalhado muito para alcançar esse objetivo. Veja a medicina. Quantas doenças derrotamos total ou parcialmente. Nosso tempo de sobrevivência aumentou. E somos muitos. Entre os mamíferos grandes, ninguém nos supera em número. Entre os pequenos, talvez percamos para os ratos, e nenhum outro mais.
Só que nem sempre nosso sistema funciona. Eis o drama. Nossa segurança é ameaçada pelo submundo de bactérias, vírus e outros malditos bichinhos minúsculos, além da sempre possível traição de nossas próprias células, que podem decidir se reproduzir com defeito. Fora esses, pelo menos mais dois perigos terríveis nos ameaçam: as intempéries, que nem toda a tecnologia é capaz de prever, e o mal mais assustador de todos, nós mesmos.
Nós sabemos ser maus. Nós não somos o leão, que dilacera o gnu por necessidade; nós, não raro, nos divertimos com a dor do outro. Bichos pequenos e grandes, pessoas adultas ou crianças, nada está a salvo da perversidade humana.
Ou seja: nenhuma lei, nenhum avanço da medicina, nenhuma tecnologia, nenhuma forma de proteção social detém o poder de realmente nos dar segurança. Não existe nada, nada!, que nos forneça a certeza de que coisas ruins não vão acontecer.
As crianças, em geral, crescem com essa ilusão. No mundo delas, o Bem sempre vence o Mal, o certo é premiado e o errado é punido. Mas chega um momento, ainda que tardio, em que elas descobrem que não é exatamente assim. É quando elas enxergam que desgraças acontecem inclusive com os bons e os inocentes. É quando elas constatam que não estão seguras. Que nunca estarão. Que, afinal, a vida não vale nada.
O impacto dessa descoberta, a descoberta do próprio desamparo, é forte demais para algumas pessoas. Isso pode arrastar alguém para o pântano da depressão. Tenho que escrever mais a respeito. Vou fazê-lo. Mas, antes, anuncio, ao som de fanfarras e trombetas: há saídas. É uma boa notícia: há saídas.