Há quase 8 mil pequenas fazendas no pequeno Estado de Massachusetts. Pequeno mesmo: Massachusetts é 10 vezes menor do que o Rio Grande do Sul.
Essas fazendolas produzem, em geral, alimentos orgânicos de ótima qualidade. Há feirinhas espalhadas pelo Estado com os produtos desses sítios. O Whole Foods, supermercado famoso pela qualidade de suas mercadorias, só se abastece nessas fazendas.
Um parêntese: o Whole Foods foi comprado pela Amazon – a Amazon, não demora, vai ser dona de todos os Estados Unidos.
Outro parêntese: em alguns meses, o Whole Foods venderá maconha para uso recreativo em suas lojas aqui em Boston.
O arroz com linguiça é tratado como prato barato e de pouca sofisticação. Afirmo que não é bem assim.
Fechando os parênteses, volto aos produtos orgânicos das fazendolas e conto que, dias atrás, fui a um açougue brasileiro que anunciava o seguinte: “Deliciosa linguiça feita exclusivamente de carne de porco das fazendas de Massachusetts”.
Pensei nos porquinhos rosados que vivem felizes pelos campos e exclamei:
– Uau! Isso parece bom!
O açougueiro inflou o peito:
– E é! Eu garanto!
Com todos aqueles pontos de exclamação, tinha de comprar aquela linguiça. Comprei-a. E fui para casa decidido a preparar o meu célebre “arroz de china pobre”. Ou: arroz com linguiça.
Antes de especificar como fiz o que fiz, tenho que lavrar aqui um protesto contra o preconceito que existe acerca do arroz com linguiça. É tamanha a discriminação, que o chamam, como disse acima, de “arroz de china pobre”. Ora, a china, para o gaúcho, é a chamada “mulher de vida fácil”, a rameira, a percanta, a que presta favores sexuais a soldo. No caso, seria uma profissional pouco valorizada, talvez em decadência, sei lá, mas o fato é que não teria amealhado muito dinheiro com a atividade, ou não seria “pobre”. O arroz com linguiça, portanto, é tratado como prato barato e de pouca sofisticação.
Afirmo que não é bem assim. Depende de quem prepara e como prepara. Eu mesmo faço, agora, uma confissão: certa feita, um bom amigo me deu, de presente de aniversário, uma garrafa de Romanée Conti, vinho requintado e caro, coisa de milhares de dólares, aquele que Lula sorveu ao ser eleito presidente pela primeira vez, causando espanto e inveja no país. Pois bem: num sábado de outono, fiz um arroz com linguiça e abri o Romanée Conti para acompanhar. A Marcinha protestou:
– Arroz com linguiça???
E eu, convicto:
– Arroz com linguiça!
Como você vê, tenho o arroz com linguiça em alta conta. Ainda mais se a linguiça foi “feita exclusivamente de carne de porco das fazendas de Massachusetts”.
Nessa última semana, porém, o que abri foi um Noble Wine da Califórnia de US$ 14 e depois cortei finíssimas fatias de bacon. Finíssimas de fato, da espessura de uma folha de cartolina.
Essas fatias, deitei-as na panela que já estava sobre o fogo. O processo fez a gordura derreter e foi nela que derramei três dentes de alho e uma cebola previamente picados. Era o refogado.
Ah, o refogado! O refogado é a base de tudo, embora esse nome soe pejorativo:
– Você não passa de um refogado!
Aliás, alguns termos da culinária são bastante expressivos. Por exemplo, o verbo flambar. Posso ver o comandante de um exército gritando para os soldados:
– Flambem, malditos! Flambem!
Voltando ao refogado: misturei a ele a linguiça que já havia dividido em pedaços do tamanho de uma pastilha de Halls preto, cada um. E aí aconteceu algo extraordinário: a linguiça se desfez gentilmente e formou uma unidade com o refogado. Era chegada a hora da pimenta-do-reino.
A pimenta-do-reino, você sabe, é uma especiaria especial tão especial, que o visigodo Alarico, para não destruir Roma no século 5º, exigiu, em pagamento, porções dela, além de ouro e prata, naturalmente. Os senadores romanos, espantados com o valor do resgate pedido pelo bárbaro, gemeram:
– Mas, se pagarmos, o que sobrará para nós.
E Alarico, muito prático:
– A vida.
Assim, temperei com pimenta-do-reino a alquimia que fervia e, em seguida, acrescentei seis tomates vermelho-escuros bem picados. E uma colher de mostarda. E algumas pitadas de sal. E, só quando o molho estava denso e cheiroso, pus o arroz.
Em poucos minutos, oh, Deus, estávamos nos repimpando com um rico arroz de china pobre. Tente neste fim de semana, mesmo que seja de linguiça de porcos do Rio Grande e não das fazendolas de Massachusetts. Mas não esqueça: compre um Romanée Contizinho para acompanhar.