Hemingway adorava matar bichos e pessoas. Mais pessoas. Há várias fotos dele sorrindo atrás do corpo de algum grande animal abatido por seu rifle. Lá estão o velho Ernest e um melancólico leão morto, ou o velho Ernest e o cadáver de um leopardo. Não há, que eu saiba, nenhuma imagem do velho Ernest junto ao corpo de um ser humano que ele executou, mas, bem, ele executou.
Esse fato não é muito conhecido, embora seja um fato. Hemingway chegou a ser julgado por crimes de guerra nos anos 40. Acabou absolvido. Depois, contou a amigos que, pelos seus cálculos, havia assassinado 122 soldados alemães. Escrevi “assassinado” porque era isso mesmo que Hemingway fazia: ele matava sem que suas vítimas sequer tivessem possibilidade de defesa. E, a dois ou três interlocutores, confessou que o prazer de caçar um homem era infinitamente maior do que o de caçar um animal.
Quando leio um livro de Hemingway, pouco me importa quem ele foi ou o que ele fez. Importa-me a sua obra.
Hemingway realmente apreciava a violência. Na época em que vivia em Paris, tornou-se amigo de vários escritores famosos, um deles o inescrutável James Joyce, que era muito provocador, mas muito fraco fisicamente. Essas características tornavam a simbiose entre eles perfeita, porque Joyce arrumava brigas nos bares, durante as esquinas dobradas das madrugadas, e Hemingway lutava por ele. Joyce discutia, Hemingway socava. Cada um na sua.
Scott Fitzgerald foi outro grande escritor da turma de Hemingway, naquele tempo em que Paris era uma festa. Os dois tinham em comum o gosto por bebidas e mulheres. Quanto às bebidas, ambos as ingeriam na mesma (vasta, enorme, oceânica) quantidade, já em relação às mulheres Hemingway tinha mais experiência. Ele vivia substituindo uma mulher por outra e escrevendo sobre elas. A ponto de Fitzgerald avisar:
– Você precisará ter uma mulher para cada livro que escrever.
De fato, os personagens femininos dos romances de Hemingway eram baseados em mulheres que ele havia conhecido na vida real, e aí o verbo “conhecer” tem acepção bíblica.
A vida de Fitzgerald, em contraponto, girou em torno de uma mesma mulher, a também escritora Zelda, bonita, charmosa e esquizofrênica. Hemingway não gostava nada dela e ela não gostava nada dele. Talvez ambos tivessem razão.
Uma noite, ainda em Paris, Fitzgerald chamou Hemingway ao banheiro do restaurante em que estavam – tinha de lhe falar em particular. Hemingway achou estranho, mas o acompanhou. No banheiro, Fitzgerald revelou que, dias antes, Zelda havia se queixado do tamanho de seu pênis.
– Com essa coisinha você nunca vai satisfazer mulher alguma – dissera ela.
Fitzgerald queria que Hemingway olhasse para o pênis dele e fizesse uma avaliação honesta. Hemingway continuou achando muito estranho, mas topou auxiliar o amigo. Fitzgerald baixou as calças, Hemingway olhou, olhou bem, olhou com cuidado e sentenciou:
– Você é completamente normal.
– Mas parece pequeno!
– É o ângulo de onde você está olhando. De cima parece pequeno. Mire-se de perfil, no espelho, e verá que seu pênis é normal.
Fitzgerald saiu do banheiro mais aliviado.
Os padrões de Zelda deviam ser muito elevados, mas, ainda que fossem, ainda que ela não se sentisse contemplada pelas medidas do marido, aquilo não era algo a se dizer, não é? Ela deve ter feito essa observação para diminuir (mesmo) o seu homem.
Ou seja: Zelda, a cruel, e Hemingway, o assassino, não eram boas pessoas. Zelda também não era boa escritora. Hemingway, sim. Era um mestre. Seu estilo direto, preciso, jornalístico, mudou um pedaço da literatura. Quando leio um livro de Hemingway, pouco me importa quem ele foi ou o que ele fez. Importa-me a sua obra. É o exercício que tento fazer hoje, com os artistas brasileiros. Eles estão sempre se manifestando, a respeito de tudo e de todos. Estão sempre falando. Eu? Eu não ouço. Não quero saber o que pensam. Não quero julgar a arte pelo artista. Não quero me desiludir. Não me venha com Hemingway. Venha-me com O Velho e o Mar.