Lá estava eu, na iminência de dar o primeiro beijo da minha vida, quando o inesperado aconteceu.
A porta do quarto se abriu.
Maldição! Era o meu avô. Ele estava conosco enquanto minha mãe viajava para vender livros da Abril Cultural. Note como faz tempo isso: as pessoas liam livros. E não havia Google, havia enciclopédias.
Saltamos para os lados, nós quatro. Meu avô não concordaria com aquela proximidade.
– Querem doce de abóbora? – perguntou ele da porta, o trinco na mão.
Voltei para casa feliz, embora estivesse em dúvida: será que, afinal, eu dera meu primeiro beijo na boca?
O doce de abóbora era feito pela minha avó, uma delícia.
– Queremos! – apressou-se a minha irmã.
Meu avô saiu para buscar o doce. Olhei para o Nick. O Nick olhou para mim. Será que não conseguiríamos? A Hora do Rei chegava ao fim. RC estava propondo:
"Neste momento
Tudo lá fora
Deixar ficar…".
Meu avô chegou com as tigelinhas. Começamos a comer. Agora, a voz meio anasalada daquele grego saía de dentro do radinho:
"Someday, somewhere
You said hello
And walked into my life…".
Era uma época romântica, acho.
Meu avô já havia saído, estávamos sozinhos outra vez. Terminamos os doces. Era chegada a hora. Levantei as sobrancelhas. Respirei fundo. O Nick sentiu que eu ia avançar. Retesou-se, em expectativa. Gritei:
– Já!
E abraçamos as gurias. Grudei meus lábios nos lábios da Silvia Lemos, que ficou perplexa, dura, imóvel, com a boca muito fechada e os olhos muito arregalados. Do outro lado, a outra Silvia, minha irmã, a Coimbra, pôs-se a lutar bravamente contra o Nick. Ela rosnava e estapeava e cobria o rosto com um casaquinho azul-marinho que usava. O Nick gemia de esforço, mas nada de conseguir tirar o casaquinho de cima da cabeça dela. Eu continuava com os lábios encostados nos lábios da Lemos. Tinha fechado os olhos, porque sabia que era assim que funcionava a coisa. No meio do processo, espiei para ver como ela reagia, e ela continuava do mesmo jeito: os olhos esbugalhados, os lábios cerrados, parecia que fora atingida pelo raio petrificante do gênio Shazzan.
O Nick era violentamente arranhado pela minha irmã, e reclamava: ai, ui, ui, ai, ui, aiaiaiaiai…
Agora eu abrira completamente os olhos. Via os olhos da Silvia Lemos igualmente abertos, bem abertos, mas eles foram se fechando devagar. Primeiro ficaram semicerrados, depois as pálpebras desceram com suavidade. Senti que ela, de alguma forma, tentava retribuir o beijo. Silvia relaxou, ergueu as mãos e me abraçou. Enlacei sua cintura. Aquilo me deixou mais nervoso ainda. Mantive os olhos abertos. Ela queria que eu continuasse. Ela queria que eu continuasse! Vitória! Mas o que, exatamente, devia fazer? Não fiz nada. Ou, por outra, fiz o que vinha fazendo. Ficamos algum tempo com os lábios colados. Fechei os olhos também. Abri, fechei, abri. Ela, por fim, abriu os seus também.
O Nick já havia desistido, estava esfregando os braços lanhados, enquanto a minha irmã ria em triunfo. Eu e a Silvia Lemos nos despegamos. Ficamos nos encarando em silêncio por alguns segundos.
– Aiaiaiai… – gania o Nick.
– Vamos voltar a jogar cartas? – propôs a Silvia Lemos.
– Vamos – aceitamos, todos.
Jogamos por mais um tempo. Eu não sabia bem o que pensar. Não sabia bem o que tinha acontecido. Não consegui me concentrar no jogo. Chegou a hora de eles irem embora. No rádio, ia começar o programa de terror Aconteceu. Eu e minha irmã fomos com eles até o corredor. Minha irmã, talvez sentindo remorsos, deu um beijo no rosto do Nick, como despedida. O Nick suspirou de felicidade. A Silvia Lemos tocou no meu braço. Perguntou:
– O que tu achou do beijo na boca?
Pensei.
– Acho que prefiro no rosto.
Ela sorriu.
– Eu também.
Beijou-me, então, no rosto. Uma, duas, três, várias vezes. E se foi. Voltei para casa feliz, embora estivesse em dúvida: será que, afinal, eu dera meu primeiro beijo na boca?