As Silvias não beijavam na boca. Também, eram muito novinhas. Para ter uma ideia: quando pedi a Silvia Lemos em namoro, ela ponderou:
– Quem sabe faço nove anos primeiro?
Éramos precoces.
Cavalgando em dúvidas, eu e o Nick decidimos, certo dia: amanhã, vamos beijar as Silvias.
Mas se tratava de namorico de criança mesmo, a gente nem pegar na mão, pegava. Imagina beijo na boca.
Quando falo em Silvias, no plural, é que eram duas: a Lemos, que comecei a namorar quando ela tinha oito e eu 11, e a Coimbra, minha irmã, que, com a mesma idade, namorava o meu amigo Nick, irmão da Lemos.
Deu para entender? Eu e o Nick trocamos irmãs, pode-se dizer.
Estou lembrando essa trama antiga porque prometi, no Timeline, contar a história do meu primeiro beijo, tarefa meio juvenil, mas que está sendo cobrada pelos leitores e pela Kelly Matos, que, todas as manhãs, reclama:
– E a coluna sobre o primeiro beijo?
Então, aí vai.
Desses nossos namoros cruzados com as Silvias, até já contei que eu e o Nick oferecemos a elas Na Rua, na Chuva, na Fazenda, clássico do Hyldon que pedimos para tocar em um programa de rádio. O Hyldon, inclusive, leu a coluna e me enviou correspondência dizendo que havia ficado muito feliz com a citação. Reproduziu a crônica no blog dele.
O Hyldon fazia umas músicas bem boas. Há outra, ótima, que você deve conhecer. O título é o mesmo de um livro de Schopenhauer, As Dores do Mundo. Mas ficam aí as semelhanças entre a canção de Hyldon e o livro de Schopenhauer, que, aliás, recomendo: é uma leitura fácil e, às vezes, divertida. Em um texto precioso, Schopenhauer desfia suas ideias deliciosamente pessimistas. Sobre o amor, que, de certa forma, é o tema desta crônica, ele diz que esse sentimento aparentemente nobre está apenas a serviço da reprodução da espécie.
Hyldon não concordaria. Ele, pelo amor, esquece tudo, até as dores do mundo. Nós, eu e o Nick mais as Silvias, também, pelo menos naquele tempo. Hoje, olhando para o quadro eleitoral, as dores do mundo me doem mais.
Mas o que importa é que as Silvias não beijavam. Já havíamos passado a barreira dos nove anos, dos 10, dos 11, chegamos aos 12, estávamos passando deles e não sabíamos nada desse negócio de beijo na boca. Não apenas eu e o Nick. Ninguém na turma sabia. Só que as gurias falavam muito disso. O beijo na boca, diziam, era eliminatório. E mais: elas se riam dos maus beijadores. Então, era uma responsabilidade. Tínhamos de beijar bem, quando chegasse a nossa hora. Mas como???
As gerações atuais têm a internet. Deve haver, no YouTube, algum tutorial de beijo na boca. Mas nós não podíamos nem sequer perguntar para a mãe, que ficava feio.
– Que que é isso, guri??? Pouca vergonha!
Outro problema: não havia Malhação. E as demais novelas não eram tão explícitas. Então, como dar um maldito beijo na boca de uma menina sem se tornar chacota no bairro?
Um drama.
É claro que fazíamos testes no antebraço, mas não era a mesma coisa. Antebraços não têm dentes e, mais grave, não têm língua. Ao que tudo indicava, a língua cumpria papel fundamental naquela atividade. O problema era saber como ela devia ser empregada. Línguas lambem. Deveríamos lamber a boca da eleita, queixo, lábios, base do nariz, tudo? Ou penetrá-la entre os dentes da dita cuja, explorando-lhe as obturações, deslocando-lhe as estrelas do céu da boca e alcançando a campainha, no escuro da garganta? Era isso que elas esperavam de nós? Uma língua sôfrega? Ou uma língua contida? Alguém, acho que o Jorge Barnabé, falou em "línguas trançadas". Devíamos enozá-las, portanto? Uma língua não é tão grande assim, a não ser a do Kiss…
Cavalgando em todas essas dúvidas, eu e o Nick decidimos, certo dia: amanhã, vamos beijar as Silvias. Foi um pacto firmado entre amigos e cunhados ao mesmo tempo. Mas sabíamos que não seria fácil, elas iriam resistir. Ah, iriam. Naquela época, as meninas eram muito mais pudicas. Assim, traçamos um plano. Mas me estendi. Terei de prosseguir na próxima coluna. Aguardem, leitores. Aguarde, Kelly.