Não acordei cedo para assistir ao casamento do príncipe da Inglaterra, mas, depois de ver os melhores lances, me arrependi de não tê-lo feito. A cerimônia, tocante e quase singela, teve mais significados do que a mera liturgia da monarquia ou até mesmo do que a celebração do amor. Neste sábado britânico, deu-se a consagração da poderosa cultura negra norte-americana.
Note que não falo em cultura "afro-americana". É um termo vago demais, abrangente demais. Em primeiro lugar, porque nem todos os africanos que vivem nas Américas são negros. Em segundo, porque há grande distinção entre as culturas negras da América do Sul, da América Central e da América do Norte.
Por exemplo: você dificilmente encontrará religiões de origem africana nos Estados Unidos. Não verá despachos nas encruzilhadas nem ouvirá o ribombar dos batuques nas noites de sexta-feira.
No sábado, os britânicos se renderam à cultura negra norte-americana. E o fizeram não por imposição, não por concessão, nem mesmo por justiça; fizeram-no pela beleza. É a beleza que torna uma cultura grande.
Aliás, os instrumentos de percussão, os tambores, os atabaques, o pandeiro, não existem na música negra norte-americana. É que os escravos foram simplesmente proibidos de tocá-los nos Estados Unidos, porque os senhores temiam que os tambores servissem como veículos de secreta comunicação e possível revolta. A repressão às manifestações culturais foi mais severa no norte da América.
Sem seus instrumentos, trabalhando de sol a sol nas plantações de algodão, os negros tinham apenas as suas vozes para se consolar. E assim, cantando enquanto sangravam debaixo dos chicotes dos feitores, eles inventaram essa melodia que é sinônimo de melancolia: o blues.
Já o samba brasileiro é o oposto do blues: o samba é alegria. Porque, com a batucada e a dança, os escravos trazidos para o Brasil tinham um desafogo cultural e religioso para as suas dores. O que não significa que a escravidão do Sul tenha sido mais branda do que a do Norte – ambas foram cruéis. Só que, quando os senhores de escravos brasileiros proibiram as religiões africanas, acusando-as de feitiçaria, os negros, com sagacidade, promoveram o que hoje é chamado de "sincretismo": disfarçaram suas divindades debaixo dos mantos dos santos católicos. Foi assim que Iemanjá virou Nossa Senhora dos Navegantes e Ogum virou São Jorge.
Sei que alguns movimentos negros defendem a abolição do sincretismo. Seria um erro. O sincretismo não foi a submissão dos negros: foi sua vitória. É mais ou menos o que aconteceu entre gregos e romanos. Os gregos foram conquistados pelas armas, mas suplantaram os romanos pela cultura. A mitologia greco-romana nada mais é do que o sincretismo do antigo Mediterrâneo.
Há a cultura negra brasileira, há a cultura negra caribenha e há a cultura negra norte-americana. São todas belas e vigorosas, mas são diferentes. No sábado, os britânicos se renderam à cultura negra norte-americana. E o fizeram não por imposição, não por concessão, nem mesmo por justiça; fizeram-no pela beleza.
É a beleza que torna uma cultura grande.
Foi lindo ver Stand by Me, composição de um negro americano, Ben E. King, sendo interpretada por um cantor negro americano, secundado por um coral negro. Foram lindíssimas as palavras de Martin Luther King que o reverendo negro americano escolheu para abençoar o casal.
A linda noiva, Meghan Markle, declarou, outro dia, que, sendo filha de uma negra com um branco, não se acha negra nem branca. E daí? Não importa o que ela é ou deixa de ser. Mas, se eu tivesse de definir, usaria uma palavra que alguns movimentos negros desaprovam, mas que, na verdade, é uma palavra doce, quente e poética, como a cultura negra brasileira: mulata.
Lembro de um pedaço dos versos de uma das mais sublimes poesias da música do Brasil:
"Da cor do mar, da cor da mata
os olhos verdes da mulata
são cismadores e fatais, são fatais".
Os olhos de Meghan não são verdes. São castanhos, creio. Mas ela é uma mulata. Uma gloriosa mulata do Norte. E, se a cadência bem marcada que ela tem no andar não vem de uma remota batucada, talvez venha do suingue de um blues. Que às vezes pode ser triste, sim, mas é sempre belo.