Quando Mozart era menino, o pai dele, preocupado com sua educação musical, obrigou-o a ouvir um trompetista.
Mozart tinha ouvido absoluto. Aos quatro anos de idade, aprendeu a tocar piano sozinho só por assistir às aulas de música que eram dadas a sua irmã. Era capaz de identificar quais eram as notas musicais dos pingos da chuva que caíam na poça d'água ou do latido dos cães no fundo da rua. Para um ouvido de tamanho requinte, o som do trompete foi grosseiro demais – depois de alguns minutos de audição, o pequeno Mozart desmaiou de horror.
Fico imaginando como Mozart reagiria ao ouvir o mais recente sucesso de Anitta, esse que está mobilizando o Brasil, Vai Malandra. Nesta terça-feira, depois de um voo de 14 horas dos Emirados Árabes aos Estados Unidos, fiquei sabendo que o clipe da música era o assunto mais comentado no vasto território entre o Acre e o Rio Grande, e não exatamente devido à qualidade da "canção", e sim pela celulite que enfeita generosamente as pernas da cantora. Li que aquela celulite seria "libertadora" e que agora todas as brasileiras seguiriam o exemplo de Anitta e mostrariam as suas próprias celulites por aí com orgulho.
Ou seja: Anitta é uma espécie de Simone de Beauvoir dos trópicos.
Li que aquela celulite seria "libertadora" e que agora todas as brasileiras seguiriam o exemplo de Anitta e mostrariam as suas próprias celulites por aí com orgulho.
Tudo bem, não discuto, cada um siga exemplo que achar mais apropriado, mas não gostaria de falar da celulite da Anitta ou da celulite nacional. Não foi isso que chamou minha atenção. O que me espantou foi a música.
Concordo que não devemos ter preconceitos contra gêneros musicais, nem contra quaisquer manifestações artísticas, mas tudo tem limite. Se aquilo é funk, certamente é mau funk. É tão primário, que chega a ser ofensivo oferecer esse, digamos, "prato musical" ao público. É algo que qualquer bandinha de torcida de futebol seria capaz de cometer no intervalo entre o primeiro e o segundo tempo.
Numa terra que reverenciou Elis Regina e que ainda tem Gal Costa, Maria Bethânia e Marisa Monte, como se explicam esses fenômenos de popularidade que nem são mais eventuais, são regra?
Sei o que aconteceu: é a decadência brasileira.
Veja como se comportou a torcida do Flamengo na final contra o Independiente, no Maracanã.
Veja os candidatos a presidente preferidos do eleitor.
Veja a covardia das pessoas nas redes sociais, julgando, ofendendo, atacando.
Veja os grupos que pedem a volta da ditadura.
O Brasil piorou. Vem piorando há tempo e, agora, com a velocidade das redes sociais, desceu de vez a ladeira, como preconizava Moraes Moreira. O Brasil, que era pobre, mas leve, transformou-se no país da violência fácil, do populismo rasteiro, do prazer da ofensa, da vulgaridade opressiva.
Ouvindo o sucesso de Anitta, lembrei-me da frase que pichavam nos muros de Porto Alegre nos anos 80: "Elis vive".
Elis vivia. Elis viveu. Elis morreu. É algo que qualquer bandinha de torcida de futebol seria capaz de cometer no intervalo entre o primeiro e o segundo tempo.