Freme e pulsa, na cidade, o assunto do beijo gay pespegado em meio a uma festa de formatura. Como só disponho de uma versão do ocorrido, faço um resumo impreciso: dois homens se beijaram na boca durante a comemoração de uma moça que se graduou em Direito, no fim de semana. O pai da formanda e alguns convidados não gostaram do gesto e agrediram o beijoqueiro mais velho, um psicólogo de 53 anos de idade. Em seguida, expulsaram o casal do lugar.
Como já disse, foi divulgada apenas a versão da suposta vítima. Logo, não vou me arriscar em julgamentos precipitados. Até porque me interessa menos o caso e mais o escândalo do beijo. Não seria a primeira vez que um beijo causa revolta, se é que foi isso que aconteceu.
Artistas vivem tentando provocar polêmica à custa de beijos. O beijo de língua, que os romanos chamavam de "savium" e que os ingleses chamavam de "beijo francês", chegou a ser proibido em algumas estações ferroviárias da Europa Central no século 19, mas não por excesso de sensualidade, e sim porque os amantes provocavam atraso dos trens com despedidas longas demais.
Nós ocidentais estamos acostumados a encarar o beijo como manifestação de afeto, mas em outras culturas nem beijo há. Os portugueses surpreenderam as índias brasileiras (positivamente, diga-se de passagem) beijando-as na boca quando aqui chegaram pela primeira vez. Nossos índios, tristemente, não beijavam... E não eram os únicos: lembre-se de que os esquimós dão beijo de esquimó – com o nariz.
Tempos atrás, eu e a Marcinha visitávamos Praga. Há lá uma igreja curiosa, de estilo gótico e velha de 600 anos, chamada Nossa Senhora de Týn, com acento no ipsilone.
Não é o acento que a torna curiosa, e sim o fato de que sua fachada fica parcialmente escondida por alguns prédios que foram construídos não apenas diante dela, mas quase colados a ela. Os prédios se voltam para uma das praças mais lindas da Cidade Velha de Praga e, atrás deles, as torres da igreja se projetam por 80 metros, rumo aos anjos do Céu. Entra-se na igreja por uma portinha lateral, meio escondida. Um charme.
Depois de um dia cheio de programações turísticas e inevitáveis caminhadas, eu e a Marcinha fomos explorar o interior da igreja. Passeávamos por entre as naves e a Marcinha, cansada, debruçou-se no meu ombro e me deu uma bicotinha nos lábios. Brinquei:
– Não me beija aqui, que vão nos expulsar da igreja.
Como se tivesse me ouvido, um padre de cabelos brancos emergiu das sombras. Pulou detrás de um pilar ou das entranhas da terra, sei lá, e dentro de uma batina negra de modelo antigo, com golas enormes em forma de asas, bradou:
– Get out! Get out! Get out!
Não parou de gritar, enquanto não saímos da igreja. A Marcinha, católica que é, sentiu-se muito mal com aquilo. Já eu fiquei intrigado: o beijo não tinha sido erótico, não tinha sido de língua, não tinha sido nem sequer de boca aberta. Fora tão somente um carinho breve. E o padre se sentiu insultado com a cena.
Por quê?
Um beijo, a não ser que seja o da traição de Judas, não é algo mau em si. Um beijo é feito um afago ou um sorriso bonito ou um abraço demorado, é um ato amoroso e bom. Por que duas pessoas se beijando pode ser ofensivo para outras pessoas?
Homem com homem, mulher com mulher, homem com mulher, tanto faz. Prefiro beijos a tantas palavras e ações duras perpetradas por aí. Beijos, é isso que queremos. Precisamos de mais beijos neste grande, confuso e, às vezes, áspero mundo.