Houve um tempo em que Porto Alegre foi a cidade do Lilliput. Não era o bar que era da cidade, a cidade é que era do bar. Em São Paulo, Rio e Curitiba as pessoas pensavam primeiro que precisavam ir ao Lilliput e depois lembravam que o bar ficava em Porto Alegre.
O impecável chope da Brahma, com dois dedos e meio de colarinho, como manda a severa lei da Bavária, era tirado sob a pressão balanceada e alternada de dois barris conjugados. Vinha cremoso e gelado como a neve da Nova Inglaterra e era servido em delicados copos de cristal que se quebrariam ante o dó de peito de Enrico Caruso, se Enrico Caruso tivesse tido a ventura de frequentar o Lilliput.
O primeiro chope, Kant já dizia, é o melhor de todos. Pois digo que jamais esquecerei dos meus primeiros chopes no Lilliput. Aquela sensação densa e fria, revigorante e excitante, aquela infusão de alegria que rolava escorreita garganta abaixo, iluminava-me a alma e, inevitavelmente, fazia com que estalasse a língua, olhasse para o amigo que me acompanhava e repetisse, sempre e sempre:
- A vida é boa...
No Lilliput, ainda melhor.
As pessoas sabiam disso, e por isso o Lilliput desabrochou como uma petúnia na primavera em Porto Alegre. Lilliputs se multiplicaram, para multiplicar o bem. Nasceram, se não me engano, seis filhos diletos. Mas o principal, o profissional, o clássico, tradicional e ortodoxo, o bar onde tudo acontecia, um dos maiores bares da história de Porto Alegre, do Brasil, da América e quiçá do planeta era... o Lilliput da Calçada da Fama!
Agora é indispensável certa solenidade. Trataremos de um capítulo importante da história do Estado: a fundação da Calçada da Fama.
Pois bem.
Em meados dos anos 90, quando o Brasil era um flamante tetracampeão do mundo, quando o Plano Real começava a vicejar, quando ainda cevávamos inocências e ilusões, você sabia o que existia ali, na Fernando Gomes, peito do Moinhos de Vento, costas da Caixa dÁgua? Sabe o que existia?
Trevas.
Não existia nada.
Lá na Padre Chagas, distante e solitário, sobrevivia o Café do Porto. E só. Então, Dirceu Russi resolveu abrir o Jazz Café.
Temos de falar sobre Dirceu Russi.
Vejam só, vou escrevendo e as janelas se abrem. E essa é uma janela especial. Dirceu Russi fez mais por Porto alegre do que todos os vereadores somados, desde que a cidade se chamava Porto dos Casais.
Dirceu Russi foi dono de pelo menos 15 bares históricos de Porto Alegre. Um deles, sobre o qual escrevi na última sexta-feira, foi o Espaço IAB. Mas houve também o Bogart, o Bere & Ballare, o Zellig, o Ópera Rock, o América e o Amsterdam.
Pense em todos os casais que se fizeram e se desfizeram nos bares do Dirceu Russi, pense nos amores que explodiram e nos que implodiram, pense no tanto que se riu e até no que se chorou, pense nas vezes em que o Brasil foi pretensiosamente salvo entre despretensiosas mordidas em batatas fritas fumegantes, pense na alegria, na amizade e no amor, porque um bar é para isso, um bar é para encontros, para que gente veja gente, e ria e converse e se aproxime e seja feliz.
Dirceu Russi fez Porto Alegre mais feliz.
Haveremos ainda de prestar homenagens a ele. Mas o espaço acabou. Vou continuar a saga dos nossos bares na próxima sexta.
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