Tenho um velho amigo que me usava como dicionário. Quando ligava, eu já sabia: lá vinha pergunta. Pelo WhatsApp, criticávamos nosso Inter, combinávamos churrascos e falávamos da vida alheia; o telefone, porém, não sei por que razão, ele reservava para suas consultas, sempre perguntas que, em noventa e nove por cento dos casos, ele próprio poderia ter respondido. Usava, eu disse, pois agora não usa mais: há uns quatro anos, recebi como cortesia de uma editora um dicionário que eu já tinha na minha estante; como era Páscoa, aproveitei para embrulhar em papel prateado, com fita e tudo, e entreguei a ele com ar divertido, mas com uma promessa solene: "Toma. O coelho te mandou. É o mais completo que tem, e ainda por cima dou assistência técnica: o que não estiver aí, podes me perguntar". Rimos os dois, mas ele entendeu a mensagem. Ontem, finalmente, quase um ano depois, ele voltou a ligar. "Vim cobrar a garantia. Esta aqui o Houaiss ainda não tem". O seu alvo era o moderníssimo trisal; ele sabia muito bem o que era, mas estava cismado com a forma (ele usou "shape") desta palavra. "Tem alguma coisa esquisita aí, que eu não sei bem o que é".
Entendo muito bem o que ele quer dizer. Trisal é como um daqueles seres compósitos de que está recheada a Mitologia Grega — o Pégaso, o Centauro, a Quimera, seres formados pela reunião biologicamente impossível de partes de espécies diferentes. O Pégaso é um prodígio de imaginação e bom gosto, personificando, de maneira genial, a imagem da leveza (um cavalo de meia tonelada erguendo-se no ar com suas grandes asas de alvura imaculada). O Centauro, por sua vez, é fruto de uma intuição ancestral daquilo que no fundo nós somos — um componente instintivo poderosíssimo que nos conduz no seu dorso e que tentamos, a duras penas, comandar e dirigir. Bem ao contrário, a Quimera é uma mixórdia, como trisal: ela tem cabeça e corpo de leão, cauda de serpente e uma cabeça de cabra bem no meio das costas, o que fez um antigo crítico dos mitos gregos perguntar que diabos esta criatura comia... Não é uma obra terminada; parece um rascunho, um esboço mal-acabado. A Quimera felizmente foi liquidada por Belerofonte; e trisal?
Esta invenção é uma dessas cruzas de jacaré com cobra-d'água, similar a várias que já apareceram por aqui, nascidas pela divisão equivocada das partes que compõem um vocábulo. O exemplo que já comentei várias vezes é o clássico hambúrguer — em Inglês, hamburger. Como vimos, hamburger é o adjetivo gentílico para quem nasce em Hamburgo, e fazia parte do nome de um prato de carne chamado hamburger steak, ou "bife de Hamburgo", introduzido na América do Norte por imigrantes alemães na metade do séc. 19 — e não por acaso chamados de hamburguesas no Uruguai, onde brilham ao lado das famosas milanesas. Os falantes americanos isolaram erroneamente ham ("presunto", ingrediente que não faz parte do sanduíche) e ficaram com burger, usando este elemento artificialmente obtido para compor uma extensa série de combinações, como chickenburger (de frango), fishburger (de peixe), veggieburger (de vegetais) e cheeseburger (de queijo) (Aqui nossa artilharia local respondeu à altura: do cheeseburger, que era apenas um dentre muitos, tomamos o cheese e o transformamos taquigraficamente em um "X" — ou xis, por extenso —, usado em combinações lexicais e culinárias peculiaríssimas ao nosso pago: xis-salada, xis-coração, xis-picanha, xis-tudo (!) e o invencível xis-calota).
Ora, com o surgimento recente de relacionamentos poliafetivos, ligados por fidelidade recíproca como nos matrimônios, criou-se uma necessidade que o idioma precisa atender: se um casal é formado por dois, como denominar uma relação formada por três? É claro que vão vetar aqui o velhíssimo ménage à trois, que embora signifique originalmente "coabitação de três pessoas", passou a ter outro sentido no léxico das práticas sexuais. Podiam optar por trinca, mas uns vão objetar que lembra mais o carteado ou a malandragem; ou trio, que vai parecer muito musical para uns ou mais adequado para o trio de arbitragem do futebol; ou tríade, mas alguns vão se lembrar daquelas organizações secretas que tentam dominar o mundo e são derrotadas por agentes do tipo 007; ou trindade, que pode parecer religioso demais para os envolvidos... Bem, parece que não se contentaram com nenhuma dessas opções e criaram o ridículo trisal, formado pelo prefixo tri, "três", mais um pedaço sem sentido que foi arrancado de casal como se arranca a perna de uma galinha assada. A consequência mais preocupante é que esta palavra não é inteligível sem uma explicação prévia, porque o ouvinte não reconhece o segundo elemento, já que o núcleo realmente importante de casal sempre foi casa, de onde ele deriva. E dizer que na imprensa, por enquanto, convivem casais, trisais e quadrisais... Credo