Devo ao leitor Vittorio C., de Bento Gonçalves, o tema da coluna de hoje: "Professor, por razões profissionais, tenho de frequentar as várias vinícolas aqui da região. Esta é a parte mais agradável do meu trabalho, pois às vezes, quando tenho sorte, sou convidado a me juntar a algum grupo de turistas que está fazendo uma visita de degustação. E é daí que veio a dúvida que vos envio hoje: na semana passada, um desses visitantes, depois de cheirar e provar o vinho servido, um merlozinho até bem razoável, veio com aquele palavrório de entendido que já conheço muito bem, mas estranhei quando ele disse que o vinho "sabia um pouco a tabaco". E vinho sabe, por acaso? Se eu estiver fazendo uma pergunta de jerico, conto com vossa compreensão".
Meu caro Vittorio, dois conselhos antes de responder: em primeiro lugar, não precisas me chamar de vós; ele não estaria errado, mas este tratamento, principalmente quando nos dirigimos a uma pessoa só, está praticamente em desuso, reservado, talvez, para imperadores ou para alguns ministros do Supremo. Seria melhor "conto com sua compreensão"; a terceira pessoa é muito mais democrática, já que vale tanto para você quanto para o senhor. Em segundo lugar, não sejas tão intolerante com os "entendidos". Sei que às vezes eles nos parecem pedantes, mas geralmente isso acontece quando falam de um tema que não nos interessa tanto quanto a eles − seja de vinhos (e agora de cervejas!), de complementos alimentares, de tipos de carro, de aplicativos de celular ou de táticas de futebol.
Agora, tua pergunta: o verbo saber veio do Latim sapere, que significava, na origem, "ter sabor, ter bom paladar", adquirindo, posteriormente, o sentido de "saber, conhecer". Nós herdamos o verbo com essas duas acepções, mas a segunda se impôs tão categoricamente que hoje pouca gente reconhece a primeira − o que foi o teu caso. No entanto, ainda assim ela pode ser encontrada ao longo de toda a história de nossa língua. Em 1616, na sua Década Oitava, Diogo do Couto descreve o impressionante suplício infligido a um cristão que caiu prisioneiro do inimigo: amarraram-no num esteio e foram comendo sua carne, a la gaúcha, assando-a aos poucos num braseiro, "e ainda lhe metiam na boca e lhe faziam mastigar, perguntando-lhe se lhe sabia bem, ao que respondeu que muito bem, pois era sua carne". No séc. 20, escreve José Régio: "Caso é que lhe estava agora sabendo melhor esse pão negro, esse queijo grosseiro, do que as mais das vezes lhe sabia o esplêndido almoço que lhe levavam à cama". Finalmente, nosso Drummond, num de seus excepcionais poemas eróticos (A moça que mostrava a coxa), diz que "a carne lhe sabia a campo frio, orvalhado".
o verbo saber veio do Latim sapere, que significava, na origem, "ter sabor, ter bom paladar", adquirindo, posteriormente, o sentido de "saber, conhecer".
Se revirarmos o seu passado, vamos ver que o sapere latino deixou muitos descendentes que geralmente nos passam despercebidos. O mais óbvio é sabor − mas também talvez te surpreenda saber que dele também vem o insípido, "sem gosto", o ressaibo, "gosto desagradável" e até o desenxabido, "desprovido de gosto, de sabor, de graça".
Caso semelhante ocorreu com o verbo pensar, que pode designar, além da óbvia atividade que nos torna seres pensantes, o ato de cuidar, tratar, fazer curativos. Pensar uma criança seria, segundo Bluteau (1728), "limpá-la, enfaixá-la, dar-lhe mama, ter cuidados dela", como usa o quinhentista João de Barros: "E acabada esta troca tomou o príncipe nos braços e foi-o pensar na sua cama". No sentido de tratar de um ferimento, o exemplo vem do próprio Bluteau, que define alveitar (um veterinário popular, sem formação acadêmica) como "aquele que sabe pensar cavalos, bois e curar os seus males". Deste sentido do verbo é que deriva o substantivo penso, usado em Portugal para designar os curativos. Ramalho Ortigão assim se queixava de um um tratamento a que foi submetido: "Introduzido o tubo e reposto o penso, a minha dor aumentou consideravelmente". E Saramago, no Ensaio sobre a cegueira, escreve que "ali não tinham água oxigenada, nem mercurocromo, nem pensos, nem ligaduras, nem desinfetante, nada". Ah, sim: em Portugal, um bandeide é um penso rápido.