Na evolução da escrita das línguas ocidentais, uma das invenções mais geniais foi o espaço em branco entre as palavras. Antes dele, escrevia-se numa sequência única, ininterrupta, numa tripa comprida que obrigava o leitor ao esforço extra de descobrir onde terminava uma palavra e começava a outra. Esta coluna, por exemplo, começaria assim: "Naevoluçãodaescritaumadasinvençõesmaisgeniais"... O passo seguinte — já um admirável progresso — foi usar um ponto separador entre elas: "Na.evolução.da.escrita.uma.das.invenções.mais.geniais". Finalmente, com o advento do espaço em branco, o ponto adquiriu nova função e passou a indicar, como até hoje, o final da frase.
Na fala, porém, este recurso não existe; como a criança aprende a falar ouvindo os que a cercam, cabe a ela descobrir onde termina uma palavra e onde começa a outra. Na maior parte dos casos, o pequeno aprendiz vai segmentar as longas sequências sonoras da língua falada nos lugares adequados — isto é, a sua divisão vai coincidir com a divisão que fazem aqueles que estão à sua volta. Às vezes, porém, ele pode cortar em duas partes o que deveria ser uma só; minha filhinha caçula — e todas as mães, tias e avós devem ter centenas de exemplos deste tipo — veio ontem perguntar se a vacina que ia tomar seria com ou sem gulha, revelando que, na sua cabecinha, o A de agulha era percebido como um mero artigo.
Um exemplo clássico é busílis, que figura no léxico do Italiano, do Português e do Espanhol, usado em frases como "aí é que está o busílis" — ou seja, aí está a dificuldade, o nó da questão, o x do problema. Na comédia "Herói à força", de Artur Azevedo, quando perguntam a Valentim por que não casou, ele diz que não é tão simples assim: "O busílis está em deitar a mão numa mulherzinha bonita, amável e ajuizada" (as leitoras que me desculpem, mas a peça é de 1886 e o personagem é tosco assim mesmo). De onde veio este vocábulo? A julgar pelas fontes — desde o sempre citado Bluteau, no seu dicionário do séc. 18, até nosso incomparável Celso Pedro Luft —, ele nasceu de parto semelhante ao da "gulha" acima mencionada.
Reza a lenda que um ingênuo mongezinho, prestando contas de seu Latim a um superior, ao traduzir o Evangelho, esbarrou na frase In diebus illis (em vernáculo, "naqueles dias"). Diz Bluteau: "E fosse ou por estarem as letras alguma coisa apartadas, ou por estarem desunidas as palavras, leu assim o examinando: In die busillis" — ou seja, isolou duas palavras que ele bem conhecia — In die, "no dia" — e embatucou com o pedaço que sobrou. O resultado foi que o monge foi reprovado e busílis, que não existia, passou a integrar nosso vocabulário. A anedota tem, a meu ver, tudo para ser ficção, pois nada explicaria como um episódio tão peculiar e isolado da vida estudantil terminou entrando na corrente sanguínea do idioma — mas, como dizem aqueles que servem jantar frugal, é o que temos no momento.
Parecido, mas não igual, foi o que aconteceu com Lorem ipsum, uma sequência em Latim que vem sendo, desde o Renascimento, usada para preencher, em livros ou impressos, o espaço que receberá depois o texto verdadeiro, permitindo avaliar melhor a fonte usada ou a diagramação da página. Como lorem não existe na língua de Virgílio, muita gente pensava que era um Latim de brinquedo, uma mera combinação aleatória de falsas palavras imortalizada pelo uso das gráficas e tipografias. Agora se sabe o que houve: o anônimo impressor renascentista aproveitou, para compor este texto, palavras e frases de uma obra de Cícero, o famoso orador romano, e, por alguma razão, engoliu a sílaba inicial da palavra dolorem, que vinha antes de ipsum, tornando-a irreconhecível.
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