Alunos do primeiro semestre de Letras de uma faculdade do interior (a pedido, não revelo a cidade) pedem que eu "lance uma luz" sobre a questão que dividiu a turma em dois grupos: "Professor, nós acompanhamos religiosamente o que o senhor escreve e muitos recortam e guardam suas colunas. Nossa pergunta é muito singela: está correta a expressão muito pouco? Alguns de nós acham que é perfeitamente normal, outros acham que não. Estes últimos alegam que ela peca por ser contraditória: se digo que ganho muito pouco, por exemplo, não fica claro se ganho muito ou ganho pouco. Esperamos seu abalizado parecer".
Caros amigos: não ouviram todos vocês que o advérbio é uma palavra invariável que serve para modificar um verbo, um adjetivo ou outro advérbio? Pois saibam que não é bem assim; essa definição, presente na maioria dos livros didáticos, só serviu, até hoje, para confundir o aluno brasileiro. O advérbio (o nome já diz tudo: "junto ao verbo") existe é para modificar os verbos; aliás, não nos causaria estranheza se ele se chamasse de "adverbo", como é no Francês (adverbe) ou no Inglês (adverb). Friso que estou me referindo aqui aos advérbios legítimos, aos advérbios propriamente ditos, como os de modo, os de lugar, os de tempo, etc. Esses nasceram para modificar verbos, e ponto.
Existe, porém, um grupo especialíssimo, os advérbios de intensidade - muito, pouco, mais, menos, bastante, assaz, demasiadamente, excessivamente, etc. Estes (e somente estes) podem também modificar adjetivos ou outros advérbios: ele corre muito (modifica o verbo correr); ele está muito feliz (modifica o adjetivo feliz); ele mora muito longe (modifica o advérbio longe). Para satisfação dos bairristas, incluo neste grupo o nosso advérbio tri (aqui, uma palavra independente, e não um prefixo): tri longe, tri feliz, tri legal.
Em muito pouco, o advérbio muito está regulando a intensidade do advérbio pouco ("hoje ele estudou pouco, mas ontem ele estudou muito pouco"). Vocês vão concordar comigo que há diferença entre um emprego que paga pouco e outro que paga muito pouco; ao longo da minha carreira de professor, nas (não raras) vezes em que eu me vi nessa triste encruzilhada, sempre escolhi o primeiro, que prometia pagar um pouco mais que o segundo. É claro que, se quisermos, podemos substituir a expressão por pouquíssimo, mas nada nos obriga a fazê-lo.
Se surgirem outras perguntas, não se acanhem em enviá-las para cá; não esqueçam que os principais beneficiados por suas dúvidas de hoje serão os futuros alunos de vocês. Quanto ao gesto simpático de recortar minhas colunas, lembro que elas vêm sendo publicadas em forma de livro pela editora L&PM, que já lançou três volumes de "O Prazer das Palavras" na sua coleção Pocket.
A partir desta quinta-feira, Cláudio Moreno, escritor e professor, passa a escrever quinzenalmente às quintas-feiras.