Dona Lia, uma gaúcha gentil que mora em Florianópolis, escreve para tecer comentários elogiosos a esta coluna e aproveita a viagem para dizer que estranhou uma construção que empreguei um dia desses - "O fato da maioria falar assim não justifica...". Diz ela: "Aprendi que nesse caso e semelhantes, não se pode fazer a combinação da preposição de com o artigo a; eu escreveria o fato de a maioria falar assim... Estou certa ou estou errada?".
Olha, dona Lia, a regra a que a senhora se refere é uma regra pedagógica (não gramatical) de meados do séc. 19, difundida por nomes importantes como Eduardo Carlos Pereira e repetida por muitos autores depois dele. Nosso idioma passava por um período em que pontificavam autoridades sem formação linguística científica, que imaginavam que a linguagem deveria ser um "sistema lógico". Essa foi a mesma atitude equivocada que tentou, por exemplo, condenar a dupla negação como agramatical, desconhecendo que essa é uma maneira normal - em alguns casos, inclusive, obrigatória - de reforçar a negação (por exemplo, não podemos usar nada se não houver uma palavra negativa anterior: não ganhei nada).
Confundindo a análise lógica com a análise sintática e fonética, esses autores condenavam frases como "na hora do papai chegar" alegando que papai, que é o sujeito do verbo, não poderia vir regido pela preposição de e que, por isso, deveríamos manter o artigo separado ("na hora de o papai chegar"). Ora, autores da importância de Evanildo Bechara e Celso Pedro Luft apontam o equívoco dos gramáticos de antanho: isso nada tem a ver com subordinação sintática; a sequência de + o se transforma em do por um processo meramente fonético que recebe o nome de elisão. E tem mais: como já notou Sousa da Silveira, na fala essa elisão é obrigatória - não me vá algum incauto pronunciar a preposição separada do pronome, porque tamanho disparate nunca se viu no vernáculo.
Na escrita, essa elisão foi praticada pelos melhores autores de nosso idioma: "São horas da baronesa dar o seu passeio pela chácara" (Machado). "Antes dele avistar o palácio de Porto Alvo" (Camilo). "Sabia-o antes do caso suceder" (Herculano). "Antes do sol nascer, já era nascido" (Padre Vieira). "Apesar das couves serem uma só das muitas espécies de legumes" (Rui Barbosa). Fica evidente que por séculos esta era uma construção correta, antes que alguém tentasse impor uma restrição quanto a ela, certamente levado por um raciocínio equivocado.
Infelizmente, a imprensa foi mordida pelo mosquito e passou a separar sistematicamente a preposição do artigo, dando a aparência de obrigatória a uma regra que Cegalla, na mosca, classifica de uma "inovação ao arrepio da tradição da língua". O uso, porém, ficou tão generalizado que não se pode mais considerar errada esta construção, apesar do que ela tem de artificial e malsoante. Acerta, portanto, quem mantém a preposição separada, e acerta quem faz a elisão com o artigo ou o pronome. Como podem ver pelo título desta coluna, este é o meu caso - muito faceiro, aqui, de braço dado com o padre Vieira e com Machado de Assis.
A partir de 10 de março, Cláudio Moreno, escritor e professor, passa a escrever quinzenalmente às quintas-feiras.