Nasci em uma casa de colorados fanáticos, mas a graça da paixão futebolística nunca tocou esta alma pagã. Todos aqueles domingos em que meu pai e meus irmãos sofriam como se o placar do jogo os atingisse pessoalmente me pareciam um mistério. Ainda hoje, o futebol me provoca o mesmo tipo de pasmo. Assisto ao êxtase dos torcedores como quem acompanha um filme sueco sem legendas: percebo a comoção, mas não entendo de onde vem.
Vale o mesmo para religião e, em certo sentido, até para o transe coletivo provocado por uma experiência estética. Nem quando eu tinha 17 anos seria capaz de desmaiar de emoção por ter chegado perto de um ídolo, e a ideia de madrugar para pegar um autógrafo ou um lugar perfeito na primeira fila nunca me ocorreu a sério. É verdade que já perdi a conta de quantas vezes chorei na plateia de um cinema ou de um teatro (a mais recente, aliás, foi na semana passada mesmo, assistindo ao belo show de Arnaldo Antunes e Vitor Araújo em celebração aos 10 anos do Instituto Ling), mas em geral é um choro de cantinho, no escuro, que nem o vizinho de fila percebe. Acho.
As paixões políticas também não costumavam me tirar do eixo por muito tempo. Vesti verde e amarelo pelas Diretas Já e preto pelo impeachment de Collor. Torci apaixonadamente pela eleição de alguns candidatos e pela derrota de outros, mas tanto a alegria quanto a frustração eram matizadas por uma certa tendência à acomodação. Nada era tão ruim que não pudesse ser emendado quatro anos depois. Nada era tão bom que não fosse afetado, mais cedo ou mais tarde, pela desordem da realidade. Depois do impacto inicial, positivo ou negativo, a vida parecia logo voltar ao normal. E como não se falava de política quase todos os dias, era possível conviver anos com uma pessoa sem saber o que ela pensava sobre liberdade de expressão, direitos humanos, ciência, democracia.
Escrevo ainda abatida com o resultado das eleições americanas, com a sensação de que a política se tornou uma paixão incontornável que nos arrasta para um estado permanente de emoções extremas. Não tenho vontade de ler os jornais nem de imaginar o que vem por aí. Como se a vitória de Donald Trump tivesse dado início a um período de luto sem prazo para terminar. Que bom que a política fosse como o futebol, em que tudo sempre recomeça do zero em algum momento. Sem sofrimento de verdade, sem vítimas fatais, sem ponto de não retorno.
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No domingo, dia 17, às 19h, vou estar na Feira autografando o livro Retrato dos Dias (Editora Libretos). Apareçam!