Em uma casa sem livros, fui alfabetizada pela música popular brasileira. Nas letras das canções, descobri o desejo, o êxtase amoroso, a solidão e a fossa, por exemplo, muito antes de aprender a ligar o sentimento poético às experiências reais, singulares, que viriam anos mais tarde.
Fui alfabetizada no sentido literário também, percebendo, na arquitetura perfeita de um verso, o rio de significados que corre dentro de uma única palavra — e como essa correnteza me levava a sentir e a pensar de maneira mais livre e mais bonita (“Uma meta existe para ser um alvo/ Mas quando o poeta diz: Meta/ Pode estar querendo dizer o inatingível”). Alfabetizada ainda no sentido político, porque eram os anos 1970 e 1980, e naqueles dias apenas uma canção poderia dizer, para quem soubesse ouvir, que um “cálice” às vezes é também um “cale-se”.
Escrevo pensando em Chico, Caetano, Gil e outros compositores que escrevem e interpretam as próprias canções. Se Chico, Caetano e Gil são como amigos de infância, é porque não consigo lembrar de algum período da minha vida sem a trilha sonora das suas vozes como acompanhamento. Os poetas que não cantam (ou não cantam tanto) nem sempre soam tão familiares. São como amigos por correspondência. Penso em Fernando Brant, Aldir Blanc, Antonio Cicero.
Cicero foi parceiro de Caetano, Gil, João Bosco, Lulu Santos, Adriana Calcanhotto e outros tantos, mas foi a voz de Marina que o colocou no rádio — e na vitrola do meu quarto — na década de 1980. Naquele momento em que tudo era estreia, a poesia de Antonio Cicero fez um país dentro de mim. Ainda hoje, e para sempre, quando ouço Fullgás, tenho 18 anos de novo e estou apaixonada. Por um disco.
Para quem acha que casos de amor à primeira audição só acontecem quando a gente tem 18 anos, proponho um desafio: coloque pra tocar na vitrola (ou na sua plataforma de streaming favorita) o novo disco do Vitor Ramil, Mantra Concreto, com poemas musicados de Paulo Leminski, e me diga se não parece que tudo em volta (e por dentro) ficou maior e mais bonito.
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Nesta terça-feira (5), às 20h, vou estar no Sarau Elétrico, no Ocidente (Av. Osvaldo Aranha, 960), em Porto Alegre, com Katia Suman, Luís Augusto Fischer e Diego Grando, falando sobre viagens e também do meu livro novo, Recado dos Dias, lançamento da editora Libretos. Apareçam!