Em um país com índices de leitura tão baixos quanto o nosso, a bolha dos leitores habituais (quem lê mais do que os 4,2 livros por ano da média nacional) é uma bola de gude. Não é incomum que a fama de um autor ou de um livro se construa no boca a boca, tomando conta da bolha, mas casos de popularidade instantânea, como aconteceu com Édouard Louis nas últimas semanas, são raros. Depois de ser aplaudido de pé na Festa Literária de Paraty (Flip) e de cansar a voz dando entrevistas nos dias que se seguiram, o escritor francês não apenas tomou conta da bolha como extravasou.
O sucesso de Édouard Louis na Flip (confira no YouTube) pode ser atribuído, em grande parte, à forma elegante e articulada como ele se expressa. Mas não só. Muita gente que fala e escreve bem não recebe acolhidas tão calorosas em Paraty. Mais do que talento, uma unanimidade desse tipo revela o quanto as ideias do autor estavam em sintonia com a sensibilidade da audiência (letrada, de esquerda, burguesa) que frequenta a Flip e lê suplementos culturais. Um caldo que poderia ser reduzido a dois ingredientes básicos: individualismo (um novo eu é possível) com consciência social (um novo mundo é possível).
Em romances autobiográficos como O Fim de Eddy (2014) e Mudar: Método (2021), Édouard Louis narra como escapou da violência, da homofobia e da pobreza reinventando a si mesmo através da cultura. Muitos personagens da literatura sobem na vida, mas Eddy/Edouard faz uma espécie de radiografia das estruturas invisíveis que costumam tornar quase impossíveis movimentos de mobilidade social tão radicais. O escritor começou a planejar sua rota de fuga quando ainda era criança. Estudou, mudou as roupas, os modos à mesa, os hábitos culturais, os dentes, o nome. Ainda assim, continuou sendo visto como uma espécie de penetra no mundo dos que aprendem a segurar os talheres e a ouvir música clássica ainda na infância.
Um americano um pouco mais velho teve uma trajetória muito parecida e também escreveu um livro (Era uma Vez um Sonho) para contar sua história de superação. Para J. D. Vance, candidato a vice na chapa de Trump, a culpa dos problemas que atingiram sua família é dos imigrantes, do feminismo, da mistura de raças, das lutas identitárias. Para o jovem francês, o que interessa é tentar entender como cada um está realmente no controle da própria vida e do próprio destino quando apenas sobreviver já é um desafio.