A música Vaca Profana fez muito sucesso no início dos anos 1980, mas nada que se compare ao seu verso mais famoso. Não é o melhor verso da música brasileira, não é sequer o melhor verso do Caetano, mas é tão conhecido que tem gente convencida de que a expressão “de perto ninguém é normal” é um ditado tão antigo quanto as igrejas de Salvador. Hoje nem todo mundo lembra da canção, mas a frase não só se instalou na linguagem cotidiana e na sabedoria popular como já foi usada como título de série (mais de uma), livro sobre amor e sexualidade, peça de teatro, filme e até como slogan de campanha contra os manicômios.
Não é normal nossa obsessão com o normal. Ou é, partindo do princípio de que o conceito de normalidade pula de galho em galho conforme o ponto de vista de quem o define: uma hora aqui, outra acolá. Podemos classificar o normal tanto como um estilo pessoal (“normcore”, o jeito de vestir de quem não parece muito preocupado com o jeito de vestir) quanto como uma patologia a ser investigada (“normose”, o comportamento de quem pira no esforço de nunca se distinguir da maioria). Durante a pandemia, antecipamos tanto o “novo normal” que a expressão perdeu a validade antes mesmo da chegada da vacina. (A ponto de a revista Vogue colocar Gisele Bündchen na capa de uma edição de 2020 sob o título: “O novo normal”. Oi?). Nos últimos tempos, estamos normalizando o “não podemos normalizar”, aplicando a expressão como escudo contra desgraças de todas as dimensões e naturezas: da crise climática às derrotas da dupla Gre-Nal, da violência policial à falta de boas maneiras.
Na campanha eleitoral norte-americana, o normal virou tema de disputa. Do lado republicano, o bilionário Donald Trump e o advogado J. D. Vance apresentam-se como legítimos representantes de todas as famílias e pessoas normais – seja lá o que isso signifique. Do lado democrata, Kamala Harris e Tim Walz apostam na estratégia de qualificar os dois oponentes como gente esquisita, que fala de um jeito que, olhando de perto (e mesmo de longe), não parece muito normal.
Alguns se sentem mais seguros imaginando um mundo dividido entre saudáveis e doentes, bons e maus, normais e anormais. Outros conseguem conviver com a noção de que fomos programados, como espécie, para agir, pensar e sentir de maneiras tão distintas quanto as circunstâncias que se nos apresentam – e a normalidade é mais uma estatística do que um atributo. Precisamos normalizar a ideia de que o normal, como quase tudo, também é político.