Cada caso amoroso é feliz ou infeliz à sua maneira, mas todas as grandes amizades são parecidas.
Quase tudo que se relaciona ao teatro do amor é impactado pelos costumes da época e do lugar em que vivem os amantes: o flerte, a corte, o casamento, as expectativas em relação ao ser amado e até as manifestações de carinho e desejo permitidas. Em comparação, amigos são amigos em qualquer canto.
Posso apenas imaginar como era viver uma grande paixão na Inglaterra de Jane Austen ou no Rio de Machado de Assis, mas sei exatamente como Montaigne se sentiu, no final do século 16, quando seu melhor amigo morreu – e não apenas porque ele escreveu a respeito. Os códigos da amizade, o que se dá e o que se espera de um grande amigo e as diferentes maneiras como esse tipo de laço molda nossa identidade, parecem atravessar fronteiras de espaço e tempo com facilidade. Na literatura, penso logo na tetralogia de Elena Ferrante e em como um romance profundamente ligado à Itália do pós-guerra levou leitoras do mundo inteiro a se identificarem com as idas e vindas da amizade de Lila e Lenu.
Ainda em cartaz em Porto Alegre, o filme As Oito Montanhas, do casal de diretores Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch, também é baseado no romance de um autor italiano, Paolo Cognetti, e conta a história de uma amizade que se estende da infância à vida adulta. Pietro é um guri de apartamento, introvertido e solitário, que costuma passar os verões no pequeno povoado onde mora Bruno, um garoto da mesma idade criado à solta nas montanhas. Logo se estabelece entre os dois uma relação de cumplicidade e curiosidade em relação ao que o outro representa. De um lado, a cidade, o apartamento, a solidão. Do outro, a montanha, a aventura, o trabalho precoce.
Muito antes do primeiro amor, é o primeiro amigo quem instala o estranhamento no nosso ambiente doméstico. Ao visitarmos sua casa, descobrimos que nem todo mundo come a mesma comida, ouve as mesmas músicas ou mora do mesmo jeito. É também a convivência com o primeiro amigo que nos leva a perceber características nossas que mudaríamos na hora se fosse possível. Pietro gostaria de saber, com certeza, qual é seu lugar no mundo. Bruno parece condenado à falta de escolha. Nenhum dos dois se sente realmente livre – e ambos invejam a liberdade do outro.
Durante toda a vida, vamos pegar emprestado traços, gostos e manias de quem convive com a gente. Também vamos descobrir, no contato com os outros, aquilo que em nós nunca muda, sejam quais forem as companhias. Talvez esse jogo de espelhos nunca seja tão intenso quanto na infância e na adolescência, quando começamos a inventar os adultos que queremos e podemos ser.