Quando a Boate Kiss pegou fogo, em 2013, minha filha tinha 14 anos. Como tantos outros pais de filhos adolescentes, fui atingida pela figuração aguda daquela dor. Não é preciso ter filhos adolescentes para imaginar o sofrimento das famílias de Santa Maria, mas a nossa natureza é assim mesmo – egoísta, autocentrada. Quanto mais próxima de nós e da nossa realidade, mais pungente e concreta nos parece a dor dos outros.
Além de dor, esses pais sentem raiva – como eu e você quando, consciente ou inconscientemente, alguém coloca nossos filhos em risco. Apenas a Justiça é capaz de purgar esse sentimento tão humano e tão difícil de superar. Imaginar que a punição dos responsáveis pode ajudar a evitar que os mesmos crimes, erros e omissões se repitam é o único consolo possível diante de uma aflição que não tem conserto ou alívio.
Os réus foram julgados, as sentenças foram distribuídas. Resta saber quem aplaca a raiva quando as pessoas que deveriam estar jogando o jogo supostamente sensato – ou no mínimo laico – da Justiça ofendem a memória das vítimas. Raiva foi o que eu senti ao ver a advogada de um dos réus encerrar a apresentação da defesa exibindo uma mensagem do além atribuída a um jovem que morreu na Kiss.
São tantos níveis de abjeção condensados nesse gesto estapafúrdio que é difícil apontar o que é mais insultuoso. A manipulação emocional grosseira presente em cada detalhe da apresentação da “carta” (linguagem, conteúdo, trilha sonora, locução)? O abraço coreografado dos advogados? A afronta à inteligência e ao bom senso? O aviltamento da Justiça? O desrespeito com os mortos e suas famílias? Cumprimento todos os presentes que conseguiram manter a calma durante a leitura. Eu não teria conseguido.
Não foi a primeira nem a última vez que um advogado tentou manipular os jurados recorrendo a argumentos morais, religiosos ou mesmo esotéricos. Talvez tribunais sejam essa arena de dedo no olho e chute nas canelas a que todos estão acostumados. Eu não estou. Diante de tantos mortos e de tanta dor acumulada, o mínimo que se esperaria é um pouco de decoro.
Triste coincidência que o teatro da carta psicografada tenha vindo a público na mesma semana em que um ministro comemorou sua escolha para o STF em um culto comandado por Silas Malafaia, atribuindo sua conquista a um “plano de Deus”. A Justiça deste mundo pode não ser perfeita, mas é a única que me interessa – na vida e nos tribunais.