“Falava em voz baixa, pausadamente e pouco. Trajava-se sempre de preto e usava chapéu coco. Janus de dupla personalidade: complexo racial e orgulho do valor que reconhecia em si mesmo.”
O Janus de chapéu coco é Machado de Assis, na descrição de Francisca de Basto Cordeiro, vizinha de porta que conviveu com o escritor na infância. Tradutora de romances como Por Quem os Sinos Dobram e …E o Vento Levou, Francisca publicou, já com mais de 80 anos, um livrinho chamado Machado de Assis na Intimidade. Não é muito fácil de encontrar em sebos, mas uma alma generosa digitalizou o volume e compartilhou no Twitter alguns dias atrás. Baixei para dar uma espiada e não consegui deixar de lado antes de terminar.
Há biografias muito mais completas e confiáveis, mas nenhuma transporta o leitor para o universo doméstico de Machado de maneira tão singela e sem filtros. O ano da publicação é 1958, mas tudo no livro cheira a final do século 19: os objetos e os personagens, assim como o estilo e o vocabulário. Um autor como Machado de Assis é capaz de fazer o leitor esquecer que está lendo um livro publicado 140 anos antes. Dona Francisca não tinha esse talento todo, mas era observadora e minuciosa. Descreve não apenas Machado e sua Carolina, a portuguesa culta e já madurona com quem o escritor se casou aos 30 anos (“Alta, magra. Tez alvíssima. Não me recordo de a ter visto sorrir”), mas cada detalhe da casa (os modestos móveis de palhinha, o retrato de Madame Récamier na parede) e dos hábitos do casal.
Para a autora, o Machado de sua infância não era o gênio literário, mas o sujeito um tanto casmurro que escrevia quadrinhas para homenagear os aniversariantes e demorava a jogar na hora do carteado. Ficamos sabendo que o escritor era ciumento, gostava de crianças (apesar de não ter tido filhos) e ficou muito abatido com a morte da cachorrinha Graziela. Nada que explique por que Machado é Machado, mas muito para alimentar a imaginação.
Quando o escritor estava para morrer, muitos amigos foram visitá-lo no chalé do Cosme Velho. Inclusive o Barão de Rio Branco, figurão da época, que lhe fez a dupla desfeita de cumprimentá-lo de maneira protocolar no leito de morte e ainda sair quase correndo do quarto para lavar as mãos.
Francisca, já adulta, também foi visitar o velho amigo da família:
– Não tinha saudades minhas? – pergunta, com carinhos de filha, segurando suas mãos.
– Estou com saudades da Vida – responde Machado, com a ironia melancólica que qualquer leitor reconheceria.