“Parai tudo o que estais fazendo, homens de gravata e sem gravata, funcionários burocráticos e deambulantes, mercadores e fregueses, professores e alunos, íncubos e súcubos – e escutai o que eu vos tenho a dizer. Chegai-vos a mim e vinde ver toda a beleza que estou vendendo a preço de banana!”
O irresistível preâmbulo da crônica Camelô do Amor, de Vinicius de Moraes, poderia ser usado para promover o podcast Tabuleiro, apresentado e idealizado por Maria Bethânia. É muita beleza por minuto quadrado, meus senhores, e é ainda mais barato do que um cacho de bananas – os três primeiros episódios (serão seis) estão disponíveis no site da Rádio Batuta (radiobatuta.ims.com.br) de graça. O formato é o mais simples possível: os textos selecionados pelo poeta Eucanaã Ferraz abraçam as canções escolhidas por Bethânia. Não tem conversa nem teoria, só música e poesia – com perdão da rima intrometida.
O primeiro episódio aproxima Clarice Lispector de cantoras como Nina Simone, Billie Holiday e Alberta Hunter, em uma associação da música negra americana com a literatura intimista da escritora brasileira que, à primeira vista, pode causar um certo estranhamento, mas, no fim, dá samba – ou blues. “Um fio de lamento triste e largo e selvático está na minha voz que te canta”, escreve Clarice no trecho extraído do livro Água Viva. “Os brancos batiam nos negros com chicote. Mas como o cisne segrega um óleo que impermeabiliza a pele – assim a dor dos negros não pode entrar e não dói.
Pode-se transformar a dor em prazer. Cisne negro?”.
O Brasil que se ama – e que merece ser amado – é o tema do segundo episódio. Mário e Oswald de Andrade, Lina Bo Bardi e o escritor e líder político ianomâmi Davi Kopenawa entram em cena ao lado de músicas de Ary Barroso, Caetano e Cazuza. No terceiro episódio, Vinicius de Moraes cruza e cabeceia, com canções e trechos de poemas e crônicas que combinam lirismo e melancolia: “Deem ao homem uma viola-de-amor e façam-no cantar um canto assim, que sua voz está rouca de tanto insulto inútil e seu coração triste, de tanta vã mentira que lhe ensinaram”.
Além do podcast, Maria Bethânia acaba de lançar um disco vigoroso, Noturno, baseado no repertório irretocável do show Claros Breus, que ela trouxe a Porto Alegre em 2019. Aos 75 anos, Bethânia pode não ser a rainha do Spotify ou a musa do TikTok, mas responde por boa parte da beleza produzida no Brasil em 2021.