A expressão “50 anos em 5”, cunhada durante a presidência de Juscelino Kubitschek, foi superada e ganhou todo um novo sentido durante o governo Bolsonaro. Quando chegarmos a 2022, terão sido 400 anos em quatro. Não pelo salto de desenvolvimento – só rindo – nem mesmo pelos retrocessos – inumeráveis, irreversíveis –, mas pela gastura diária de acordar toda manhã sabendo que algum membro da família B. irá produzir nas horas seguintes aquele tipo de sobressalto desnecessário que não apenas azeda ânimos em escala industrial como serve para encobrir algum problema de verdade que não está sendo enfrentado como deveria.
Se o bolsonarismo não passou de um delírio coletivo causado pelo consumo excessivo de teorias conspiratórias, promessas alucinógenas de ordem e progresso e ódio acumulado “contra tudo isso que está aí”, as eleições de 2020 deram sinais de que o efeito da droga pode estar começando a passar. Não me condenem pelo excesso de otimismo, mas percebo certa fadiga dos materiais entre seus defensores de primeira hora. Um crescente nojinho dos confrontos vazios, dos palavrões, dos perdigotos (principalmente dos perdigotos...), da falta de ações positivas e/ou propositivas. Sem cortinas de fumaça e ataques aos “inimigos do povo” (muitos deles, ex-aliados), o bolsonarismo e a visão de mundo que o sustenta não sobrevivem cinco minutos na chuva.
Para quem quer entender melhor como se formou essa visão de mundo e como ela chegou ao poder no Brasil, os seis episódios do podcast Retrato Narrado são um programa obrigatório – ainda que possivelmente indigesto para estômagos mais sensíveis. O podcast reconta a trajetória de Bolsonaro dos anos de formação, na cidade paulista de Eldorado, até a eleição, passando pelas carreiras fracassadas como militar e deputado e pelas picuinhas que alimentaram alguns dos seus ressentimentos mais profundos e duradouros.
Na semana passada, entrou no ar um episódio bônus sobre Olavo de Carvalho, apresentado pela repórter gaúcha Letícia Duarte. Uma das jornalistas mais talentosas e premiadas da sua geração, Letícia foi recebida duas vezes na casa do ideólogo de extrema-direita, em Richmond, na Virginia, e ouviu, inabalável, todos os ataques que o comendador bolsonarista costuma sacar contra seus adversários. Letícia não apenas segurou o tranco com elegância e autocontrole sobre-humano, como deixou que toda a insanidade do interlocutor viesse à tona (entre muitos perdigotos, evidentemente) – da Terra plana ao satanismo dos Beatles, do negacionismo aos delírios de grandeza.
Grande momento para o jornalismo, péssimo dia para o perdigotismo ideológico nacional.