Não existem guerras religiosas, existem disputas de poder. Eventualmente, o poder está associado de forma tão íntima a uma religião em particular que fica difícil distinguir crentes de correligionários, mas não se enganem: a guerra é deste mundo mesmo, não do outro.
Por trás de todos os conflitos que dividem compatriotas e na origem de todas as tentativas de impor um determinado sistema de crenças existe, e sempre existiu, a volúpia de conquistar territórios muito menos abstratos do que aqueles em que a espiritualidade costuma se instalar. Mesmo quando as intenções são as melhores (raramente são), impor uma crença à força, desconsiderando outras formas de religiosidade ou o direito a não se ter religião alguma, implica não apenas ignorar o luxuoso conceito de livre arbítrio, base da civilização judaico-cristã, mas, em muitos casos, exige que outros princípios da própria religião sejam deixados de lado. Dogmas passam a ser "customizáveis" ao sabor da ocasião. Amai-vos uns aos mesmos.
Nada disso, claro, é novidade. Foi assim desde que o primeiro Homo sapiens espantou-se ao descobrir que a tribo do outro lado da montanha adorava um ídolo diferente e achou por bem acabar ali mesmo com a palhaçada. Em algum momento do século 18, porém, outros Homo sapiens chegaram à sensata conclusão de que o único jeito de parar a matança em nome da fé seria atar a ideia de liberdade religiosa ao conceito de democracia e aos recém-inventados "direitos dos homens e dos cidadãos". Com a democracia, porém, veio a liberdade de expressão e a possibilidade de criticar, negar e fazer piada com tudo aquilo que existe no reino das ideias - inclusive as religiões alheias. O preço da liberdade é a eterna tolerância.
Quando centros de umbanda e de candomblé são atacados, como vem acontecendo com frequência assustadora no Brasil nos últimos tempos, ou a celebração de uma missa com elementos da cultura africana é interrompida, como ocorreu há pouco mais de um mês em uma igreja católica no Rio de Janeiro, fica difícil encontrar na religião cristã um argumento que justifique esse tipo de violência. O mesmo pode-se dizer do ataque contra a sede da produtora Porta dos Fundos na semana que passou. Está claro que não é uma guerra espiritual que está em curso, mas uma disputa de poder que usa a religião como plataforma - desrespeitando a democracia e ofendendo todos aqueles que levam realmente a sério a própria fé, seja ela qual for.