Em uma gelada manhã de inverno, um pai agasalha a filha de três anos antes de saírem juntos para ir até o supermercado. Pai e filha conversam e se divertem pelo caminho. No caixa da loja, o pai se distrai tirando as mercadorias do carrinho e perde a menina de vista por alguns instantes. Quando procura por ela, percebe que a filha desapareceu. Esse é ponto de partida do romance A Criança no Tempo, de Ian McEwan, que dá forma a um dos piores pesadelos de pais e mães. O livro, na verdade, vai além, abordando de forma ampla a maneira como nossa época lida com a infância, mas muita gente considera o argumento simplesmente intransponível.
Todos temos nossos limites – terror, violência explícita, tortura psicológica... – mas, nos últimos tempos, parece haver uma epidemia de sensibilidade exagerada em relação ao tratamento de determinados assuntos na arte. Os americanos batizaram de "trigger warnings" (algo como "avisos de gatilho") os sinais de alerta que acompanham obras que podem vir a ferir suscetibilidades. Os "trigger warnings" costumam aparecer onde menos se espera: Simba sofrendo com a morte do pai em Rei Leão, Chapeuzinho Vermelho sentindo-se ameaçada pelo lobo, Harry Potter sendo maltratado pelos tios... Tudo potencialmente devastador. Ou assim pensam alguns.
O extremo oposto da sensibilidade exagerada é a eliminação de todas as sutilezas. Ali alimenta-se a ilusão de que é possível domesticar o potencial transgressor da arte classificando as obras conforme uma noção particularmente estreita de moral. Segundo esse ponto de vista, uma cinebiografia de Irmã Dulce sempre será melhor que a de Bruna Surfistinha – não importando se o diretor do filme é Bergman ou Mazzaropi.
Aristóteles dizia que a tragédia nos fascina pelo seu poder catártico. Vivendo as emoções dos heróis trágicos como se fossem nossas, de alguma forma purgamos esses sentimentos e nos libertamos deles. Gosto da ideia de que a arte lavra nossa alma, tornando-a mais fértil para sentir e compreender o mundo a nossa volta. Li A Criança no Tempo sentindo cada excruciante detalhe da dor de Stephen e Julie, pais da pequena Kate. Não porque gosto de sofrer, mas porque gosto de autores que nos convidam a contemplar o abismo. E voltar.