O medo da morte matou minha mãe. Às vezes, diante de uma doença grave, a única chance de sobrevivência passa pela decisão de encarar alguns terrores íntimos — o que, obviamente, nunca é simples.
Em vários momentos, nos estágios iniciais do câncer que a mataria menos de dois anos depois do primeiro diagnóstico, minha mãe poderia ter agido de forma mais ágil na busca da cura. Como o tumor que a matou não costuma ser letal, é provável que tivesse se curado — ou assim me disseram alguns médicos. Mas, em vez de dividir o problema com os filhos e acatar as orientações de tratamento disponíveis, ela trocou várias vezes de oncologista, na esperança de que um deles oferecesse o diagnóstico que gostaria de ouvir. Confiava em sua própria força, que sempre foi imensa e nunca nos faltou, e também na capacidade da fé de remover montanhas — assim como tumores. Quando finalmente decidiu dividir o problema comigo e meus irmãos, já não havia mais nada a ser feito.
Entre o consolo de uma esperança mística e a irrevogável materialidade de um diagnóstico ruim, muitos preferem acreditar no primeiro. E não é difícil de entender por quê. A proximidade da morte engendra aquele tipo de circunstância capaz de mudar quase tudo o que sabemos sobre nós mesmos, inclusive aquilo que consideramos essencial — como a fé ou a ausência de. É por isso que pessoas doentes (e todos aqueles que as amam e sofrem com elas) são as vítimas preferidas dos mercadores da fé e da esperança. Trata-se do negócio mais lucrativo do mundo, já que o produto que eles vendem não apenas é inesgotável como muitas vezes é o único alívio disponível no mercado.
Não tenho dúvidas de que minha mãe teria ido ao encontro de João de Deus, tivesse tido tempo ou oportunidade para tanto. E eu, mesmo considerando o gesto inútil e desesperado, teria provavelmente me oferecido para acompanhá-la. Naquele momento, também eu estava desesperada. Não tanto a ponto de rever minhas posições em relação a curas espirituais (abandonar o materialismo que me situa e me constitui seria como desistir de um pedaço do meu próprio corpo), mas o suficiente para apoiar qualquer movimento que diminuísse sua dor e seu medo.
É curioso que os dois maiores casos de abusos sexuais e estupros em série, no Brasil, tenham sido praticados por um homem de ciência (o ex-médico de reprodução assistida Roger Abdelmassih, condenado a 181 anos de prisão por estupro de pacientes) e um homem de fé (o médium e curandeiro João de Deus, acusado por cerca de 200 vítimas). Ambos têm, em comum, o fato de terem explorado a confiança e a fragilidade das mulheres que recorriam a eles em busca de ajuda.
Pela forma torpe e desumana como agiram durante décadas, convencidos da impunidade e da própria importância, merecem todo o rigor da lei. A grande diferença entre os dois é que o escritório do médico ficou às moscas assim que as denúncias começaram a vir à tona, enquanto a Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, continuou atraindo fiéis mesmo depois de uma procissão de vítimas aparecerem na televisão relatando situações horrendas de abuso. A fé tem poderes a que o espírito crítico e a razão apenas aspiram — como bem sabem todos aqueles que aprenderam a extrair dela sexo, dinheiro e ainda mais poder.