É um relógio que já não marca as horas há pelo menos 20 anos. Algo no mecanismo que o fez funcionar durante boa parte do século passado precisaria de reparo. É provável que em algum lugar de Porto Alegre ainda se consertem relógios de parede vendidos pela Casa Masson nos anos 1920 (a data da compra, 1928, ano do nascimento do meu pai, está anotada, no fundo do relógio, com a caligrafia trêmula do meu avô), mas até hoje não me senti inclinada a tirá-lo de casa em nome de um retorno forçado – e desnecessário – ao mercado do trabalho mecânico.
Quando criança, adorava aquelas badaladas solenes soando desde a cozinha da casa dos meus avós, mas a verdade é que quando o relógio se mudou para o pequeno apartamento em que eu morava, já adulta, o barulho começou a me parecer inoportuno. Além disso, vamos admitir, ninguém mais precisa de relógios, nos pulsos ou nas paredes. A menos, claro, que eles estejam instalados em um lugar de honra da casa não para marcar o tempo que corre para frente, mas para manter viva a memória das horas – e das pessoas – que ficaram para trás.
O relógio dos meus avós é um dos poucos objetos que nos restaram da casa deles. Qualquer um que já precisou se ocupar da organização dos pertences deixados por pais ou avós sabe que é uma tarefa que se cumpre com uma certa dose de culpa. É fácil encontrar descendentes dispostos a tornarem-se os novos guardiães de um relógio antigo, de um espelho bonito e mesmo de um conjunto de louça desemparelhada. Mas uma vida, como uma casa, comporta muito mais do que os objetos ainda úteis ou bonitos.
A maior parte das coisas que acumulamos fica impregnada de significados invisíveis ao olhar da posteridade. São objetos órfãos de sentido, como livros nunca abertos, sem herdeiros para reclamar direitos sobre eles. Essa herança, via de regra, não fica com a família. Se não são doadas, essas coisas vão parar em brechós, antiquários e mesmo no lixo. Eventualmente, alguns objetos ganham novas encarnações na casa de pessoas que não sabem nada sobre sua origem ou seus antigos donos. São herdeiros acidentais de um tipo de inventário que não precisa ser escrito nem lavrado em cartório.
Uma vida, como uma casa, comporta muito mais do que os objetos ainda úteis ou bonitos.
Com artistas e outros personagens públicos acontece de objetos banais ganharem uma dimensão histórica. No caso do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu (1948-1996), o novo endereço de alguns dos seus pertences pessoais é o Delfos – Espaço de Documentação e Memória Cultural da PUCRS. Uma boina, uma carteirinha de estudante, uma máquina de escrever, um lenço, um álbum de bebê e outros objetos estão hoje guardados em armários de vidro para o olhar reverente de fãs e pesquisadores. Todos os seus leitores são herdeiros acidentais.
Guardião desses objetos, o professor Ricardo Barberena deu um jeito de fazê-los saírem a voar pelo mundo, convidando 28 escritores a escreverem histórias inspiradas por cada um deles. O resultado é o livro O Que Resta das Coisas (Zouk), recém lançado. Quando escreveu um conto chamado Inventário do Ir-Remediável, Caio não deve ter imaginado que a ideia poderia ser levada tão a sério.