Nas fotos e ilustrações em que aparece a fachada do Theatro São Pedro, o edifício em que eu cresci às vezes dá as caras, no fundo da imagem, como um anônimo intrometido pegando carona na selfie do vizinho famoso.
Cresci ali, no cotovelo que aproxima o São Pedro e a Biblioteca Pública – o segundo prédio sendo muito mais importante do que o primeiro na minha infância e adolescência. Quando o teatro voltou a funcionar, depois de 11 anos fechado, em 1984, eu já estava chegando aos 18 e pronta para ir morar sozinha pela primeira vez. Até então, o prédio que dava as costas para o nosso edifício não passava, para mim, de um casarão abandonado e lúgubre, eternamente cercado por tapumes que eu e meus colegas do Grupo Escolar Menna Barreto Neto fomos convidados, em algum momento, a decorar. Já a Biblioteca tinha sido, durante muitos anos, quase a extensão da minha casa – que, se não contava com muitos livros nas estantes, tinha a vantagem de estar localizada no melhor endereço possível para quem gostava deles.
O teatro de uma cidade, grande ou pequena, é sempre uma promessa de transcendência.
O São Pedro entrou na minha vida bem mais tarde, quando comecei a trabalhar na área de Cultura do jornal e já havia me mudado da Riachuelo. Na memória desses 30 anos de espetáculos, os artistas se misturam, as datas se confundem, as palmas protocolares dividem espaço com aplausos sinceros, lágrimas de pura beleza, risos – e um ou outro cochilo. Tirando os apartamentos em que morei e o jornal onde eu trabalho, não há nenhum outro lugar de Porto Alegre que eu tenha frequentado por tanto tempo e com tanta regularidade quanto a plateia do Theatro São Pedro.
Por esse teatro, passaram os espetáculos e as muitas versões de mim mesma que se sucederam. Da espectadora inexperiente dos primeiros anos ao olhar mais treinado da maturidade, mudei por fora e por dentro. Passaram as companhias (de teatro) e as companhias (que me acompanhavam) – amigas, namorados, maridos, filha. Mudaram os figurinos, os gostos, as causas – no palco e na plateia. Poderia reconstituir boa parte da minha biografia se tivesse guardado, junto a cada ingresso de espetáculo a que assisti nos últimos 30 anos, uma ou duas linhas sobre o que eu estava sentindo ou pensando pouco antes de as cortinas vermelhas se abrirem e de o lustre de cristal se apagar.
O São Pedro me localiza no tempo e no espaço. A casa que está completando 160 anos hoje representa, melhor do que qualquer outro endereço ou paisagem, meu lugar no mundo. E não apenas porque frequento a casa há muito tempo ou porque fui sua vizinha quando ainda estava aprendendo a ser gente, mas pelo que essa história de quase dois séculos significa.
O teatro de uma cidade, grande ou pequena, é sempre uma promessa de transcendência. É o lembrete, em vidro, tijolos e madeira, de que a vida não pode ser apenas vidro, tijolos e madeira. É preciso sonhar, contar histórias, ser atravessado pela necessidade das coisas e dos sentimentos que parecem desnecessários. O São Pedro é o lugar da cidade em que a beleza resiste e se impõe. Como se fosse absolutamente necessário. E é.