A cena é sempre impressionante. O artista desprende-se do palco, salta no ar e mergulha de braços abertos sobre a plateia, lá onde centenas de mãos estranhas e reverentes disputam o privilégio de amparar o ídolo – honradas pela chance de tocar a divindade em sua breve visita ao reino dos mortais.
A performance (alguns chamam de "mosh", outros de "stage dive") é a própria síntese da atitude rock'n'roll: inconsequente, audaciosa, provocativa. Mas, quando dá errado, dá muito errado. Teve o músico que caiu no fosso dos fotógrafos (e no ridículo) em vez de aterrissar sobre os braços da plateia – localizada alguns centímetros mais adiante do que o astro calculara. Outros, mais desafortunados ainda, veem o público desviar em bloco de sua trajetória rumo ao desastre, sofrendo a dor aguda da rejeição tanto na alma quanto nos ossos.
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Lançar-se ao desconhecido vai contra cada fibra do senso de autopreservação da maioria das pessoas. Para o mosh acontecer, portanto, não basta que artista e plateia vibrem na mesma onda. O mosh exige também um certo flerte com a possibilidade do desastre. Um flerte que pode ser movido por loucura, exibicionismo ou simples inconsequência, mas que sempre vai fascinar aqueles que não têm coragem sequer para saltar os dois últimos degraus da escada de casa.
Nos últimos 10 anos, Belchior empreendeu uma espécie de mosh definitivo e radical. Por motivos que a biografia que o jornalista Jotabê Medeiros vai lançar em setembro talvez venha a esclarecer, o artista deixou para trás tudo o que tinha (amigos, família, bens, dívidas, carreira, compromissos...) para iniciar um salto mortal rumo ao imprevisível. Sem rede alguma a não ser aquela tecida pela memória afetiva dos fãs, Belchior desfrutou diferentes tipos de amparo nesse período. Em um lugar, uma garrafa de água mineral. No outro, uma cama, um prato de comida, um sofá, uma diária de hotel.
Em 10 anos, foi a pelo menos 10 cidades do Rio Grande do Sul, sempre aterrissando sobre braços estendidos que impediam sua dolorosa queda na realidade dura e banal de viver e morar às próprias custas. Contando apenas com os fãs e o próprio impulso para seu último salto mortal, voou no ar – e nunca caiu.