Será o derradeiro capítulo de uma das maiores tragédias gaúchas?
Onze anos depois, podemos finalmente ter justiça no caso da boate Kiss, um incêndio em que 242 jovens, na maior parte universitários, morreram sufocados, sem chance de socorro, e 636 ficaram com sequelas devido à queima de espuma acústica por artefatos pirotécnicos lançados do palco.
Podemos finalmente ter paz. Paz e justiça é o que centenas de famílias, uma cidade inteira e o nosso Estado aguardavam ansiosamente.
Ninguém mais aguentava tanta impunidade. Uma omissão histórica vergonhosa, barulhenta e incômoda, cheia de reviravoltas e frustrações.
O Supremo Tribunal Federal (STF) não concordou com o Tribunal de Justiça (TJRS), que havia anulado o júri realizado em dezembro de 2021 sob a alegação de problemas técnicos — o julgamento mais longo da história do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul resultara na condenação dos quatro réus a penas de 18 a 22 anos de prisão.
O ministro Dias Toffoli reverteu, em despacho dessa segunda-feira (2), a nulidade do júri do caso da boate Kiss, atendendo recursos do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) e do Ministério Público Federal (MPF). Também determinou o retorno à prisão dos quatro réus.
Entre os próximos e hipotéticos passos, pode ocorrer eventual necessidade do posicionamento de Dias Toffoli em plenário, para aval da turma do STF. Em seguida, o processo regressa para as tratativas finais do TJRS.
A notícia coincide com a demolição do prédio onde funcionava a casa noturna em Santa Maria. Será transformada em memorial em homenagem às vítimas, com o objetivo de preservar a memória e conscientizar a população sobre prevenção. O espaço contará com um jardim circular ao centro, rodeado por 242 pilares de madeira, com suportes de flores, eternizando o nome de cada vítima.
Era a última pedra a ser derrubada do ignominioso passado.
— É um alívio, mesmo sabendo que foram dois anos absolutamente desnecessários que somente apertaram ainda mais a nossa dor. Se a gente não corresse atrás, não gritasse, não cobrasse, nada seria feito. Foi uma pequena grande vitória de uma batalha que vem consumindo nossas sanidades e velhices — diz Flávio Silva, da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).
Aliás, pedras formam a simbologia da perda de Flávio. A filha Andrielle partiu quando ela comemorava 22 anos na Kiss, com as amigas. Foi um aniversário que se converteu em impactante velório.
A despedida de sua filha se desenrolou na véspera da tragédia, durante um almoço familiar no pátio de casa, numa pacata quinta-feira. Enquanto ele preparava e temperava os galetos, Andri cortava a grama e montava a churrasqueira. Ele se lembra da adolescente animada, colocando caprichosamente um tijolo sobre o outro. Parecia que ela construía o seu futuro, tinha recém sido aprovada no vestibular para Design Industrial. Com longos cabelos pretos caindo na testa, um piercing brilhando no lábio, ela ria. Flávio ainda chora com aquele riso.