Um dos dilemas contemporâneos para quem é monogâmico (ou alega ser) é entre lealdade e privacidade.
A estratégia de quem age sem razão é inverter a situação para transferir a culpa.
Faço algumas perguntas para esclarecer o tradicional ardil usado por aqueles pegos em flagrante na infidelidade.
Se você mexe no celular de seu parceiro e percebe que ele vem traindo, você é que está errado?
Você não poderia fuçar nas coisas dele sem autorização, enquanto ele pode ser infiel sem autorização, descumprindo o pacto estabelecido no início da relação de não sair com outras pessoas?
Você cometeu o suposto crime de invadir o aparelho alheio, mas os seus segredos que foram levados para lençóis estranhos não são relevantes?
Há alguma diferença no jeito que se desvendou a pulada de cerca?
Mudaria o sentido da história se não fosse mexendo no celular, mas encontrando um bilhete no bolso da calça, ou cheirando as roupas, ou abrindo uma fatura do cartão de crédito que não é sua e localizando gastos imprevistos?
Não seria também uma invasão de privacidade?
Ou é mais desculpável quando não é com o celular?
De que forma teria conhecimento da realidade? O amante avisaria? Ou você esperaria sentado uma confissão de um caso que já dura alguns meses? Quantos dias dormindo na mesma cama, olhando nos olhos, sem ele dizer a verdade? Precisava aguardar mais? Em que momento deixaria de ser precipitação da sua parte?
Você é acusado de não confiar nele por espiar a troca de mensagens nos aplicativos, então sua indiscrição diminui a pena dele por quebrar a confiança ao meio com uma sedução enrustida?
As falhas se equivalem? São de igual natureza?
Você é culpado pela falta de liberdade, ele é culpado pela falta de sinceridade, o que pesa mais?
Qual o maior constrangimento: não acreditar na palavra do seu par e investigar, ou ser o último a saber que já é vítima silenciosa da comiseração dos amigos e colegas em comum?
Ele não deveria estar dividindo os seus pensamentos e atitudes em vez de se preocupar em não dividir o celular?
Quem rompeu os laços: o que se envolveu com outrem ou aquele que procurou a verdade não dita depois da completa mudança de comportamento?
Qual desespero prevalece: o de quem descobre escondido que é enganado ou o de quem engana escondido?
O que vem primeiro: a intimidade, essa convivência cúmplice, essa partilha da vida que merecia ser espontânea, ou o respeito ao sigilo das conversas com terceiros?
O que importa para o amor: o que acontece no coração, ou no celular?
A ordem dos fatores altera a soma do desastre?
E se você não achasse nada de desabonador, se não contasse com nenhuma prova, nenhuma evidência, nenhum fiador para legitimar a desconfiança e a agressão feita ao espaço pessoal do seu par, como justificaria sua conduta? Abandonaria o seu ciúme, a sua possessividade? Veria que está adoecido? Que está sendo abusivo no romance?
Eu só queria entender.