Nunca um inverno foi tão aguardado.
As temperaturas baixaram no estado. Estão zeradas em algumas cidades como Caxias do Sul. Estão negativas em cidades como São José dos Ausentes. A capital gaúcha amanheceu com 2,4 graus Celsius na segunda-feira (1º).
A neblina significa que não haverá chuva violenta, que não haverá enchente, que não precisaremos medir os rios com medo de seu transbordamento.
Se perguntar a qualquer gaúcho o que ele prefere entre os extremos de nossa vida, o calor ou o inverno, dirá que é o frio.
Suportamos o gelo como uma condição inerente de nosso pampa. O minuano é a nossa segunda pele.
Nossas melhores lembranças são desafiando os ventos gelados da serra ou do campo. Nossos milagres se resumem a sempre ver a neve.
Temos mais apetite. Temos mais vontade de trabalhar chutando a geada. Sentimo-nos mais corajosos na estrada. Levantar cedo já é motivo de orgulho — proclamamos a todos que ainda era noite ao sair para o expediente. O chimarrão fica mais gostoso. A família se torna mais unida e próxima dentro de casa.
Este inverno é um antídoto da tragédia. Vai nos devolver um pouco a normalidade que perdemos nos últimos meses. Agirá como uma trégua para remontar as existências, uma suspensão provisória do pânico para colar os pedaços de nosso desamparo.
Recordaremos o prazer que é descascar uma bergamota, ou segurar uma xícara quente de café com ambas as mãos, deixando a fumaça banhar o rosto. Recordaremos a alegria que é procurar o lado do sol da calçada. Recordaremos chatices tão tolas como carregar os casacos na mão durante o almoço. Recordaremos arrependimentos ingênuos como o de não usar ceroula, negando o conselho dos pais, ou de não soprar as polentas antes de comer, queimando assim o céu da boca. Recordaremos o temor infantil das portas batendo. Recordaremos a nossa alergia e os longos espirros consecutivos diante da lã guardada.
Evocaremos invernos antigos em que nada nos ameaçava tanto. As meias que secávamos atrás da geladeira. O ritual de descer as roupas do alto do armário, de acumular edredons em cima da cama a ponto de não conseguir se mexer, de resgatar o poncho para passeios no domingo, de desenhar palavras engraçadas nos vidros traseiros dos carros dos amigos, de rezar para o chuveiro permanecer quente até o final do banho.
Este inverno é um antídoto da tragédia. Vai nos devolver um pouco a normalidade que perdemos nos últimos meses.
Seremos livres e espontâneos no ambiente doméstico, desfilando pantufas e sobreposição estranha de trajes, subjugando a elegância pelo conforto.
Existirá também uma melancolia benéfica que nos permitirá ouvir canções tristes e milongas, para organizar as nossas emoções e pensamentos.
Pois a solidão não nos assusta, o recolhimento não nos intimida. Podemos nos sentar na janela para momentos de introversão, observando os movimentos lentos da natureza. Podemos aguentar o silêncio, desde que tenhamos nossa residência seca e intacta, protegida e salvaguardada da enxurrada do outono.
Neste inverno, vamos nos agasalhar de esperança. Que ela seja o começo de teto para 6.554 desabrigados. Que todo abraço passe a ser um cachecol.