Já é folclórica a gafe de Romeu Zema. Num programa de rádio, ele recebeu de presente do apresentador um livro de Adélia Prado. Sem saber quem era a autora, ele perguntou:
— Ela trabalha aqui?
A desconhecida do governador de Minas Gerais acabou de ser anunciada como a vencedora do Prêmio Camões, a mais importante distinção da literatura em língua portuguesa, levando para casa a bagatela de 100 mil euros.
Ela foi selecionada no aniversário de 500 anos de Luís Vaz de Camões, o que aumenta ainda mais o seu prestígio. A honraria vem uma semana depois de a poeta de 88 anos ganhar o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra, com o valor de 100 mil reais.
Adélia é uma unanimidade da simplicidade. Nunca deixou sua cidade natal, Divinópolis. Nunca deixou de ir à missa, de celebrar o casamento com José, seu parceiro de vida inteira, de se identificar como professora, profissão que exerceu no anonimato de 24 anos.
Seu nascimento lírico lhe ofereceu a chance de expressar o luto de sua mãe, em 1950. Da lápide mais fria e dolorida fez a sua escrivaninha.
Permaneceu inédita por quatro décadas. Enquanto não se revelava, seguiu o ofício do magistério e formou-se em Filosofia.
A lentidão foi a paz do seu caráter. Talvez nunca viesse a ser conhecida por vontade própria. Ficaria restrita aos leitores de seu município com a edição caseira de Bagagem (1976).
O conterrâneo Carlos Drummond de Andrade é que a descobriu e forçou o seu reconhecimento em escandaloso artigo no Jornal do Brasil: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”.
Desde então, o sol jamais parou de iluminar a sua produção.
Em 1978, saiu O Coração Disparado, com o qual conquistou o Prêmio Jabuti. Tornou-se a poeta mais amada do país, enchendo auditórios de súbita adoração: o público só queria estar perto daquela mansidão em pessoa, falando seus achados do espírito.
A montagem de Dona Doida: um interlúdio, de 1987, estrelada por Fernanda Montenegro, em cartaz por doze anos, deu o empurrão que faltava para o estrelato.
Com mais de 20 livros, Adélia Prado se sobressaiu pelo sotaque particular, misturando sensualidade e transcendência, receitas e reflexões profundas. Elevou a intimidade a um patamar de encontro divino. Não precisava de muito para ser feliz. O despojamento franciscano lustrava o mundo de gratidão.
“Pensava assim:
se a cama for de ferro e as panelas,
o resto Deus provê:
é nuvem, sonho, lembranças.”
Partia de uma matriz regional, do ambiente doméstico, dos acontecimentos caseiros do interior, para alcançar uma mensagem universal, que absorvia a mudança de costumes, principalmente a emancipação do prazer feminino, não mais subjugado à obediência e submissão aos homens.
“Mulher é desdobrável. Eu sou.”
A partir dela, culpa e cobrança desapareceram, invertendo lugares comuns e mostrando que a amizade é a alma do relacionamento.
“Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram.”
Não é de hoje que os políticos viram as costas para a literatura e preferem livros de autoajuda. Mas o tempo é implacável: olha nos olhos do verdadeiro verbo.