Se eu morrer, não quero que minha esposa e meus filhos condenem a Deus. Não quero que parem de rezar. Não quero nenhuma retaliação às crenças, nenhum boicote à esperança.
Não quero que praguejem o destino como se minha partida fosse uma injustiça. Não quero que assumam o tom grave da amargura no cumprimento diário.
Não quero que vistam roupas escuras mais do que o necessário. Não quero que deixem de procurar os seus amigos ou de manter as suas rotinas. Não quero que me vejam como pretexto para desistir de qualquer coisa. Não quero ser fiador de abandonos, de renúncias, de adiamentos. Não quero que prendam as minhas roupas no armário, que trancafiem os meus sapatos nas gavetas — desejo que passem tudo adiante.
Que não tenham medo de doar os meus órgãos, dos olhos ao coração, que não limitem o meu espírito, que não me economizem, que não se mostrem avarentos com a ciência e a multiplicação da vida, que jamais confiem em superstições de que precisarei de meu corpo amorfo, de que sem ele não me conservarei inteiro e completo na ressurreição entre os mortos.
Que não disputem pela herança, que não tentem adivinhar o que eu diria se estivesse vivo. O que era importante — meus valores, meus princípios, meu caráter — já reparti na convivência.
Que as minhas canções, meus filmes e livros preferidos não sejam evitados. Que não reneguem os lugares que frequentávamos juntos: os restaurantes, os parques, os bares, os mapas de nossas caminhadas. Que não tenham pudor de voltar aos nossos pontos prediletos e fazer novas lembranças com outras pessoas.
Nenhuma falta é resolvida brevemente. Entendo que será um baque, talvez um espanto — o vazio não surge sem violência —, mas que o luto seja cumprido dentro do possível, devagar, sem pressa, sem a ânsia de esgotá-lo de qualquer jeito.
Que parcelem o pesar, como fizemos com os móveis sob medida da cozinha.
Que o choro venha nas datas festivas, que a íris fique mais luminosa para a humildade.
Contenta-me pensar em ser mais motivo de suspiro do que de lágrimas. O vento sempre me apeteceu mais do que a chuva.
Que não percam a fé por minha causa. Que não amaldiçoem o brilho das estrelas extintas no céu.
Mas, por favor, que eu possa ser posto de lado de vez em quando. Que me esqueçam suavemente. Que eu dê trégua para a dor. Que a saudade receba o antídoto da gratidão. Que os feriados sigam sendo emendados com os finais de semana, propícios para realizar pequenas viagens, como eles tanto gostam e celebram.
Que larguem algumas flores mensais em minha lápide, menos por mim e mais para despertar o capricho da vizinhança.
Que não se sintam culpados por rir. O riso é incontrolável. Somos capazes de rir, de modo involuntário, do riso de alguém.
Que não percam a fé por minha causa. Que não amaldiçoem o brilho das estrelas extintas no céu.
A finitude já estava prevista no contrato da existência. Não fui enganado, ninguém foi enganado. Um dia iria acontecer. Não temos certeza do fim, o que torna tudo muito mais surpreendente.
A honestidade é irmã da imperfeição. A beleza tem um quê de silêncio. Não estarei visível, mas serei mais profundo.