Morei em São Leopoldo por dez anos, na rua José Bonifácio, no centro da cidade, perto da estação do Trensurb. Eu via o trem chegar e partir da minha janela.
Dizem que você nasce de novo no lugar onde nasce seu filho. Meu segundo filho é capilé. Seu parto ocorreu no Hospital Centenário, conduzido pelo meu amigo Dr. Moacir, o Moa.
Eu trabalhava na Unisinos, e meu mundo se resumia a dez quadras a pé: ia à agência dos Correios, à Tabacaria Central, ao café do Senadinho, ao shopping, com passos cronometrados. Sabia com quem toparia no caminho, porque os vizinhos faziam tudo igual, como eu, religiosamente. Ninguém se atrasava em suas tarefas cotidianas. E podíamos realizar tantas atribuições no mesmo dia — buscar roupa na costureira, despachar cartas, ver as promoções da loja, pegar filho na escola — porque a vida era perto, abundante em sua estreiteza.
Não tem como não ter o coração encolhido e atravessado por agulhas finíssimas e afiadas ao testemunhar a cartografia inteira de São Leopoldo inundada, incluindo as ruas do centro, até então inatingidas pela cheia.
Dos 220 mil habitantes, 180 mil estão desalojados. Ou seja, 82% da cidade está colapsada. É uma população inteira expatriada dos seus lares, expulsa de seus domínios. Os cinquenta abrigos se mostram superlotados, com mais de 18 mil socorridos.
No desespero, não existem presente e futuro. São minutos de apreensão que duram dias. Vem uma imobilidade atemporal da angústia: como retomar a normalidade? Pois a normalidade está a anos-luz de distância da realidade.
A rede de serviços se encontra destruída, sem luz, água e internet. Sequer é viável uma rota de fuga, não tem como sair para o lado de Porto Alegre nem para as bandas de Novo Hamburgo. O Rio dos Sinos, que ultrapassou nove metros, isolou seus viventes. No sábado (4), a comporta do dique se rompeu.
Há um apego imenso nas nossas cidades da Região Metropolitana. Eu experimentei esse sentimento de pertencimento, de acolhimento, de cuidado mútuo. Predominam um orgulho das raízes, uma cumplicidade dos acontecimentos internos, das notícias da redondeza.
Percebo laços entre São Leopoldo, Canoas, Esteio, Sapucaia do Sul e Novo Hamburgo. Representam municípios irmãos. Se a BR os corta, os moradores se unem.
E eles, em uníssona dor pela elevação das águas, experimentam o pior momento de suas histórias: mortes, desaparecimentos, evacuação e desabastecimento.
Quanto mais você ama um lugar, mais sofre. Sofre por todos. Sofre pela vida feliz que já teve lá.