Beatriz diz que tenho TOC, mania de organização e limpeza. É a esposa que diz, jamais vou confessar.
Assim como ansioso não admite que é ansioso.
Se eu assumir tal defeito que julgo como uma virtude, ela vai deitar e rolar com a sua bagunça em casa. Perderei a credibilidade da reclamação.
Tudo começou em mim com o jornal debaixo da porta. Foi o ato fundador da minha obsessão.
Porque não leio jornal amassado. Odeio, aliás.
Sofro quando alguém pega o jornal antes de mim. Faço questão de ser o primeiro a resgatá-lo do capacho da porta para não enfrentar concorrência.
Separo delicadamente os cadernos, equilibro minha xícara de café quente e viro as folhas em cima da mesa da sala com cuidado cervical.
A manhãzinha é um dos meus melhores períodos. Desperto calmo e solitário enquanto a família dorme. Talvez seja minha única realeza.
Nem sempre tive paz.
Na infância, eu briguei muito com o pai. Foram três anos de apelações e competições silenciosas, dos nove aos 12 anos.
Meu pai não tolerava ser o segundo na leitura do jornal. Só que ele transformava o papel em papelão, em forro de chão para pintura.
Dobrava as páginas, derrubava manteiga, recortava as manchetes interessantes, sublinhava trechos, mudava a ordem das seções, transformando-o em quebra-cabeça. A editoria de Esporte migrava para a de Política, a de Cultura se deslocava para a de Economia.
Era custoso ajeitar a numeração, pedia o trabalho profissional de um arquivista.
Herdar a leitura dele representava uma calamidade. Com certeza, o jornal que embrulhava os ovos no armazém estava mais conservado do que aquela edição do dia.
Decidi desafiá-lo, e comecei a acordar mais cedo do que ele.
O entregador deixava o jornal pelas 5h30min, o pai levantava às 6h, eu o precedi em 10 minutos.
Durante um mês, li o jornal antes. Jurava que havia vencido a guerra dos horários.
Mas ele se antecipou aos meus 10 minutos e recuperou a sua primazia no mês seguinte.
Mas eu me antecipei aos seus 10 minutos e retomei a liderança.
Até que, sem percebermos, nos adiantamos demais à missão e nos encontramos às 5h20min: o pai e eu de pijama, sonolentos, na varanda da casa, sentados lado a lado no banco de madeira, esperando o jornaleiro.
Quietos, emocionamo-nos com a orquestra do alvorecer. Os cachorros ocupavam a sua função de galos urbanos, os pássaros soltavam a sua cascata de piares, o vento assobiava entre os galhos das araucárias.
Pena que o nosso extraordinário momento de amizade durou até o entregador arremessar o jornal no jardim.