Um de meus pintores prediletos é o uruguaio Joaquín Torres García (1874-1949). Há oitenta anos, ele criou o manifesto A Escola do Sul, em que, de modo transgressor, virou o desenho da América de ponta cabeça.
Ele defendia: “Nosso norte é o sul. Não deve haver norte para nós, exceto em oposição ao nosso sul. Portanto, agora nós viramos o mapa de cabeça para baixo, e então temos uma ideia verdadeira de nossa posição, e não como o resto do mundo deseja. O ponto da América, de agora em diante, para sempre, aponta insistentemente para o sul, nosso norte”.
Combateu o eurocentrismo das cartografias com a sua emblemática gravura a caneta e tinta da América Invertida e sua teoria que divergia do rótulo de Terceiro Mundo. Afinal, todos sabemos que a Europa foi alargada e a extensão territorial da América do Sul e da África, estrangulada.
A imagem exibia, pela primeira vez na iconografia planetária, uma representação da América do Sul fora de sua posição-padrão, orientada pelo sul no topo.
Uruguai passaria a ocupar um posto de destaque, assim como Rio Grande do Sul, alçado para a cabeça geográfica, não mais relegado aos pés do continente.
Não me causou estranheza, portanto, a atitude do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que colocou à venda seu novo mapa-múndi, mostrando o Brasil no centro do mundo, com o Meridiano de Greenwich um pouco à direita do comumente estabelecido.
A edição esgotou em menos de 24 horas e causou rebuliço nas redes sociais por um indisfarçável patriotismo.
Quem diria que o bordão bolsonorista, “Brasil acima de tudo”, pintaria no atual governo, remodelando-se numa estratégia de incorporar para si os benefícios do nacionalismo na retomada da economia, e também servindo de cartão de visita para a cúpula do G20, grupo das 20 maiores economias, que ocorrerá no Rio de Janeiro, em novembro.
É um exercício de imaginação mais do que uma constatação científica. Conserta-se a ideologização do mapa com novas distorções ideológicas.
Para entender a natureza dessa lacração, é interessante constatar que não criamos a roda, o movimento é global. Rússia, Japão, China, Austrália e Argentina já fizeram isso, seguindo o princípio de que o centro do mundo é onde começa o seu olhar.
A visão não seria mais a geral, como se fosse a de um drone, mas particular, com a origem em cada país. O GPS da ilustração estaria ligado ao ponto de partida.
A tendência de colocar o país em evidência e se opor ao imperialismo americano ou à colonização europeia pode trazer uma mudança positiva de mentalidade.
Carregamos, dentro de nós, o estigma de que moramos longe dos grandes acontecimentos, de que ser visitados por turistas estrangeiros é quase um favor da parte deles, ou uma fuga, ou uma pura excentricidade.
Em Porto Alegre, por exemplo, estranhamos quando encontramos alguém falando inglês na rua. Consideramos um evento incomum, por um distanciamento mental embutido em nossas condutas, efeito colateral da baixa autoestima, de um complexo de vira-lata sarnento.
Nosso ímpeto é ficar perto, ouvir a conversa indiscretamente, esperando o momento certo para interpelar a figura:
— What are you doing here? You seem to be lost.
(O que você está fazendo aqui? Parece estar perdido.)