A tragédia da Pousada Garoa, que resultou em 10 mortes na sexta-feira (26), em Porto Alegre, é um dos efeitos colaterais da flexibilização da Lei Kiss.
Criada em 2013, a Lei Kiss, nº 14.376/2013, era uma resposta contundente e rigorosa ao incêndio que vitimou 242 pessoas na boate Kiss, em Santa Maria, no dia 27 de janeiro daquele ano.
Assegurava normas de prevenção e combate a incêndios a todos os imóveis não considerados como unifamiliares exclusivamente residenciais.
Infelizmente, para liberar alvarás com maior rapidez, diante da falta de efetivo no Corpo de Bombeiros, abriu-se precedente com mudanças constantes do texto original, em duas novas redações (Leis Complementares Estaduais nº 14.555/2014 e nº 14.924/2016), até que a Assembleia Legislativa aprovou, no fim de 2022, o total enfraquecimento da Lei Kiss. O somatório Frankenstein de legislações complementares deixou buracos para que pequenos imóveis fizessem uma autodeclaração de que estavam em ordem, sem a necessidade da vistoria.
Escolheu-se preservar patrimônio e empresas em vez de preservar vidas.
Ali, naquele ato político inflamado, naquele acordo de pragmatismo, está o início das chamas que acabaram com o futuro de uma dezena de inocentes no centro porto-alegrense, não lhes dando chance de escapar de uma ratoeira.
A pousada foi uma das empresas beneficiadas pela medida. Por quê? Ela se apresentou com a natureza de escritório, não como hospedaria com mais de 200m², e não existiu nenhuma auditoria. Tal discrepância não passaria batido pela lei original.
Se antes ela teria que ser avaliada de acordo com sua ocupação, lotação máxima, capacidade de controle de fumaça e cumprir exigências mínimas de segurança para receber um alvará dos bombeiros, agora, as alterações da lei facilitaram as irregularidades.
Hoje, basta o empresário autodeclarar pela internet o perfil do negócio, suas características e informações de segurança. Os bombeiros apenas checam os documentos. Confia-se na palavra, não nos olhos da fiscalização. O processo dura cinco dias úteis e não requer visita presencial.
A teoria passou a se divorciar perigosamente da prática. Restou apenas a obrigação dos extintores de incêndio e sinalização de emergência, que de nada adiantaram no caso do albergue de três pavimentos, com quartos minúsculos, um do lado do outro, sem a devida e adequada ventilação. A inalação da fumaça foi suficiente para assassinar os hóspedes.
Houve uma precarização do documento de excelência, que unia engenharia, arquitetura e responsabilidade técnica e blindava contra a possibilidade de riscos. Houve uma relativização danosa na perícia de parte dos imóveis, desconsiderando relevantes questões estruturais como compartimentação vertical e horizontal, controle de materiais de acabamento e revestimento.
A Lei Kiss nem contou com tempo de adaptação e já foi simplificada. Sequer conseguimos dar amparo às famílias das vítimas do caso Kiss, e a lei que o tomou como base não subsistiu. Tampouco a condenação aconteceu e ela não assusta mais.
Eu compreendo que devemos compatibilizar os interesses privados com os propósitos públicos e incentivar o surgimento de microempresas, desde que não se prejudique a natureza ilibada da coexistência social, muito menos seja ameaçada a integridade dos contribuintes.
A calamidade desse recente incêndio — o segundo mais letal na história da capital gaúcha — nos obrigará a revisar a atual lei, visivelmente inepta. No fim das contas, temos que voltar para a Lei Kiss.
A desburocratização pode matar ao pressupor relaxamento imprevidente das normas.