Enganos podem ser trágicos. Interpretações fora do contexto podem ser fatais.
Diretora da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira pediu a retirada do livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, das salas de aula.
Cerca de 200 exemplares de O Avesso da Pele, que aborda o racismo estrutural, chegaram à escola Ernesto Alves em dezembro de 2023, para ser trabalhados pelas turmas.
O livro fazia parte do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC), que distribui obras didáticas e literárias às escolas públicas, por solicitação das próprias instituições.
A censura partiu da alegação de que o romance apresenta palavras que definem órgãos sexuais e descrevem relações íntimas.
A diretora pinçou pequenos trechos das quase 200 páginas do livro. São momentos isolados e pouco representativos do cerne da trama. Ela ficou horrorizada com o vocabulário de baixo calão, que apenas retrata a linguagem coloquial da vida como ela é, de acordo com as idiossincrasias e faixa etária dos personagens. Não é o autor falando, porém seus personagens.
Existe uma injustiça na presunção da vulgaridade.
Primeiramente, a obra foi eleita por comissão do Ministério da Educação, na gestão de Jair Bolsonaro. Em seguida, cada escola desfrutou de livre-arbítrio para definir os autores aprovados que pretendia adotar no currículo. Ou seja, a escola de Santa Cruz do Sul é que escolheu O Avesso da Pele entre centenas de títulos habilitados. Não consistiu em uma imposição.
Não existe contraindicação para a narrativa. Pelo contrário, O Avesso da Pele tem o reconhecimento do Prêmio Jabuti, a maior premiação literária do país. Já contou com adaptação para o teatro e seus direitos acabaram de ser vendidos para cinema. Traduzido para dez idiomas, encontra-se na 13° edição no país. Duzentas mil pessoas compraram um exemplar por espontânea e soberana vontade, devido a gosto pessoal, paixão pela proposta e afinidade com o estilo. O sucesso de crítica e público coloca o romance acima de qualquer suspeita.
Vale destacar que o livro não está sendo direcionado para o ensino fundamental, naquilo que poderia ser classificado como “precocidade sexual”, mas destinado aos adolescentes do ensino médio. Portanto, para jovens que namoram e que necessitam de orientação educacional a respeito da sua sexualidade.
Os termos que causaram repulsa são desconstruções críticas do negro como objeto sexual, maldosamente exposto como superdotado, esvaziado de alma e de personalidade por piadas preconceituosas, numa curiosidade tipificada do racismo. Jeferson combate a forma como o negro é percebido, enfrenta a exploração inadequada e utilitária do seu corpo.
Conheço Jeferson Tenório. Ele me antecedeu como patrono da Feira do Livro de Porto Alegre e me confiou a chave da Praça da Alfândega. Garanto que ele é um dos escritores mais sérios, compenetrados e dedicados da literatura brasileira. É o oposto da escatologia, da pornografia, da safadeza. Trata-se de alguém rigoroso, elegante e refinado. Escreve com a sobriedade de um clássico, privilegiando a transmissão das ideias a partir das suas figuras ficcionais.
Converse com ele por meia hora e se verá deslumbrado pela sua educação, pela sua maneira respeitosa e atenciosa de acolher a todos.
Talvez a origem do escândalo seja mais profunda, pelo fato de o protagonista ser um professor negro.
Na história, o professor é assassinado por engano numa abordagem policial em Porto Alegre. Seu filho tenta entender o que aconteceu e quem era o pai.
Parece que ele foi assassinado pela segunda vez, agora em Santa Cruz do Sul.