Toda civilização será evoluída de acordo com o tratamento dado a seus mortos.
Pelo jeito, nossa cultura anda aniquilada.
Virou hábito a circulação de nudes da morte, de celebridades na maca do Instituto Médico Legal, despertando uma curiosidade mórbida de como os corpos ficaram depois de um acidente fatal.
Não há nenhuma empatia com a vida e memória do artista, nenhuma compaixão com a família. São urubus ansiosos pelo espetáculo da escatologia.
Existe uma profanação consciente da beleza e da verdade de uma trajetória, uma maldade deliberada para angariar likes a partir do terror, para ganhar atenção indevida pelo pior da condição humana.
A web reprisa os tempos do cangaço, em que as cabeças de Lampião e Maria Bonita eram expostas em praça pública.
A virtualidade é uma terra sem lei e piedade, sem consideração alguma com parentes e herdeiros que já sofreram miseravelmente com uma perda e são obrigados a reviver as tragédias e testemunhar seus afetos em posições de absoluta e triste vulnerabilidade, ainda mais quando houve o impacto da colisão de um carro ou da queda de um avião.
Já amargamos, em 2015, a indiscrição mórbida que atingiu o cantor Cristiano Araújo (1986-2015). Fotos e vídeos apanharam a autópsia e preparação do cadáver na funerária. Cenas chocantes do sertanejo foram partilhadas debochando da dor de seus entes queridos.
Agora assistimos, novamente incrédulos, pelas redes sociais, a passagens da necropsia da cantora Marília Mendonça (1995-2021), morta em um acidente de avião em Caratinga (MG), em novembro de 2021.
A polícia de Minas Gerais investiga o caso, procurando descobrir quem teve acesso ao laudo da artista, cujas imagens foram compartilhadas por grupos de WhatsApp desde quinta-feira (13).
Se você tem decência, se você tem uma sobra de caráter, se você tem a mínima dignidade, se você tem um pingo de moral, se você tem um lar para voltar todo dia, não passe adiante tais arquivos e denuncie quem está enviando. A veiculação das fotografias configura um crime previsto pelo Código Penal. Mais do que isso, demonstra uma monumental misantropia.
Não acredito que fãs participem dessa corrente boçal, que é um ato de boicote ao cancioneiro sensível e afetuoso de Marília Mendonça.
A menina goiana revelada no coro da igreja, que compunha desde os 12 anos, espalhando o seu cabelo brilhante pelo rosto, com o seu riso de volta por cima, não merece esse golpe pelas costas em sua posteridade.
Foram sete anos de carreira com uma intensidade incomum que devem ser preservados.
Marília, quando estava entre nós, pedia com insistência o respeito à privacidade, o fim das indiscrições, a separação entre boatos e notícias. Até hoje, debaixo da terra e no céu da saudade, ela não é ouvida.
Ela revelou que tinha medo do que poderia acontecer quando ela morresse.
Em um tweet de 2019, a Rainha da Sofrência, que muito consolou os nossos corações, que assumiu o protagonismo feminino num gênero de homens, que recusava migalhas na relação, que preferia ficar sozinha a mal acompanhada, que combatia a hipocrisia e a dependência tóxica dos casamentos, desabafou:
“Quantas vezes vocês vão matar as pessoas? Existia um limite do medo: o medo de morrer. Hoje tenho medo até do depois da morte. O que tem no lugar que era pra ser um coração aí dentro de vocês?”.
Não correspondia a uma profecia, mas acachapante realismo, conhecimento de nossa atual — e aparentemente irreversível — indigência emocional.