O mundo está chato demais. Você não pode se expressar que corre o risco de ser ideologizado. Você não pode pensar fora da caixa que talvez sofra um exílio sem volta. Você não pode brincar com nada sob a pecha de que está constrangendo o outro.
O politicamente correto virou paranoia, perseguição, caça às bruxas.
Não se releva mais o contexto de cada fala, de cada diálogo, de cada encontro. Não se perdoam mais as palavras levando em conta as intenções.
Nelson Rodrigues não iria sobreviver aos nossos tempos de patrulha. Millôr não iria sobreviver aos nossos tempos literais. Sérgio Porto não iria sobreviver aos nossos tempos de censura moral. Seriam sumariamente cancelados.
Ironia é uma figura de linguagem abolida. Só vigoram o lugar comum, o clichê, a tirania de uma única e indivisível opinião. Sátiras não têm espaço para nascer e combater condicionamentos.
Há preconceitos e crimes que não podem mesmo ser perpetrados pelo humor. Mas os limites do que é errado extrapolaram o bom senso. Atingem a todos em qualquer hora.
A liberdade morreu. É uma quimera.
Você pode decidir se converter num eremita, fazer voto de silêncio e não se indispor com coisa alguma. Nem assim escapará do impasse. Ainda haverá alguém perguntando: por que você está me olhando?
Predomina uma tendência de se ver dono dos direitos sem a contrapartida dos deveres.
Os descontentes não reclamam mais de nenhum serviço, mas processam. Vivem se sentindo injustiçados. Voo foi cancelado: processam a companhia aérea. Conta da luz veio com despesas a mais: processam a companhia de energia elétrica. Wi-Fi sem sinal e perda de um dia de trabalho: processam a operadora. Não se pega mais o telefone para pedir informações e reivindicar correções. Há a procura de lucro e culpados em todo aborrecimento prosaico de nossa vida. Parece que as pessoas estão comemorando as falhas alheias, que se tornaram uma mina de ouro para retratações.
Depois dizem que a Justiça é lenta, mas como será rápida com tantos processos desnecessários?
Ninguém toma uma ducha fria antes de tomar providências.
A escola não é poupada. Basta o filho reclamar do excesso de obrigações que os pais aparecem na coordenação alegando que ele anda estressado, que a escola exige muito de sua saúde emocional ao dar tantos temas de casa. Os pais não confiam no método da escola, apesar de terem sido eles, paradoxalmente, que escolheram a instituição.
Maldita educação em que alunos não são mais alunos, mas clientes. Onde pararemos?
Imagine, então, a seguinte cena no Ensino Fundamental.
Um professor indica um aluno para protagonizar o papel de churrasqueiro numa peça infantil sobre a Semana Farroupilha. A apresentação será no auditório da escola para as famílias.
O menino coloca a carne para assar enquanto recebe os seus convidados no palco.
Depois dos ensaios, estranhamente, o professor é convocado pela direção. Foi denunciado pelos pais por ter constrangido a criança, humilhado a criança, atribuindo-lhe uma figura que sacrifica os animais. Pois a família é vegana.
O professor não tinha como adivinhar os princípios morais e éticos daquele lar (que são justos, desde que informados com antecedência). Ele foi acusado antes de ser instruído. Jurou que estava valorizando o aluno em papel de destaque na comemoração do 20 de Setembro.
Se esse é um caso verídico, se aconteceu de verdade? Não é, mas acontece todos os dias em nossas escolas de um jeito ou de outro, variando apenas os personagens.