Para ter graça, para ser inesquecível, a viagem precisa de uma grande gafe, de um vexame sem precedentes. Quanto maior o mico, mais duradoura será a memória.
A gargalhada é um marcador de página da cumplicidade a dois, a moldura do postal do lugar visitado.
Estava com a esposa no Museo delle Sinopie de Pisa, junto da famosa torre inclinada, na Toscana (Itália).
Enfrentávamos um inverno rigoroso em nossas férias, com temperatura de zero grau. Era frio, frio mesmo, de renguear o cusco, tanto que usava ceroula.
Fui aproveitar o ingresso para ir ao banheiro de graça. Nas estações de trem, o acesso é cobrado. Um euro por pessoa. Poupei aquele euro para o café.
Estranhei que a privada se encontrava com resíduos inconvenientes do último frequentador. Achei uma descarada ausência de educação e de asseio. Não custava nada pressionar um botão antes de se despedir do ambiente.
Apertei a descarga por ele. Não aconteceu nenhum movimento no vaso, a água sequer tremeu. Deveria estar estragada. Perdoei mentalmente o meu desleixado antecessor.
Tirava a água dos joelhos tranquilamente. De repente, escutei um alarme ecoando pelas paredes do sanitário. Uma sirene enlouquecida. Nem o badalar dos sinos da catedral românica de mármore, naquela Piazza dei Miracoli, mostrava-se tão escandaloso.
Apressei a minha necessidade temendo que fosse um incêndio. Só o que me faltava ter um acidente logo na minha primeira vez na região, sequer tinha subido na torre torta.
Também não queria morrer com as calças e ceroulas arriadas, em cena absolutamente desprovida de dignidade, longe de casa e do meu rincão.
Dei um ligeirão para sair logo dali.
Apertei o alarme de incêndio em vez da descarga. O botão do alarme de incêndio estava ao lado da privada.
De supetão, um funcionário entrou no banheiro. Detalhe: eu tinha chaveado a porta. Ele me pegou desprevenido, desmontado pela metade. Assustado, pulei como um saci colorado em sua direção.
Pensei que ele tinha aparecido para me salvar, para resgatar pessoas presas no recinto.
Porém, sua agitação não transparecia amistosidade, muito menos preocupação. Não tinha jeito de socorro. Pelo contrário, ele me acusava. Gritava desaforos incompreensíveis em italiano. Eu não entendia do que ele me ofendia. Pedi com calma:
— Can you speak English, please?
Foi quando ele me explicou que apertei o alarme de incêndio em vez da descarga. O botão do alarme de incêndio estava ao lado da privada.
Coloquei o prédio inteiro a evacuar comigo.
Na saída do museu, Beatriz, junto de uma multidão de curiosos, depois de me perder lá dentro, abraçou-me com vontade, aliviada por estar seguro:
— Você viu que teve um incêndio?
Por precaução, não apertei mais a descarga nos dez dias que nos restavam na Itália.