Vou narrar um fato de minha infância.
Eu estava prestes a apanhar na escola de um garoto muito maior do que eu. Um colega terrível, bagunceiro, que vivia roubando nossas merendas, bolitas, figurinhas e baixando a nossa calça de abrigo na frente das meninas.
Ninguém continha sua soberba raivosa. Notas vermelhas, ameaças de reprovação, bilhetinhos do SOE (Serviço de Orientação Educacional) não lhe surtiam efeito, não mudavam o seu comportamento desordeiro.
Afinal, o que são os punhos perto da força das palavras?
Era um ciclone destruindo os momentos bons e a cumplicidade das conversas no recreio. Repetia a série e se portava como dono por usucapião da sala de aula.
Ele havia me jurado vingança durante o último período daquele dia porque não passei cola na prova de história: “vou te pegar na saída!”.
Fez o gesto fatídico da mão direita socando a esquerda para mim. Testemunhas entenderam que eu me tornava alvo de seu ódio.
A turma passou a informação da briga adiante, para as outras classes. Criou-se um tumulto de coliseu, um alarido de arena, à espera do toque da sineta e liberação dos professores.
Não tive condições de fugir pulando os muros do campo de futebol, minha tradicional saída de emergência dos conflitos, pois o corredor polonês estava formado no pátio. Colegas me empurravam para o ringue e seguravam a minha mochila.
No meio da rodinha — quando já contava com a surra monumental e o mercúrio cromo ardendo na minha pele, já me imaginava com as bochechas inchadas e os olhos de urso panda —, o meu irmão caçula Miguel apareceu pedindo licença.
Ele era magrinho e mirrado, com cabelos cacheados e um guarda-chuva de cílios cobrindo suas íris amendoadas. Ninguém entendeu aquela figura frágil avançando, passo a passo, em direção ao meu agressor.
Calmamente, alheio aos gritos e incentivos, Miguel falou algo nos ouvidos do valentão. Eu não sei o que ele disse, mas o garoto desabou a chorar, virou as costas e partiu. A frustração coletiva diante da ausência de pancadaria se converteu em vaias.
Todos começaram a chamá-lo de covarde.
Depois disso, o menino passou a fugir quando eu me aproximava pelo corredor da escola. Se me via, dava meia volta. Parou de me incomodar, de surrupiar os meus pertences e de importunar os alunos indefesos.
Até hoje não descobri o que Miguel cochichou. É o segredo de Fátima da família. Não consigo adivinhar qual o conteúdo de sua frase matadora que desarmou a violência e socorreu o meu destino. Mesmo após quarenta anos, ainda não foi revelado. Nem a mãe, sempre onisciente, tem conhecimento. Hoje juiz em Dois Irmãos (RS), Miguel jamais demonstrou caridade com a minha curiosidade. Ele apenas ri e levanta os ombros, como se não se lembrasse do episódio.
Guardo, desse estranho acontecimento, uma certeza: não há maior arte marcial do que a linguagem. Existe um poder de persuasão da inteligência que desmonta os mais férreos escudos e os mais impenetráveis ferrolhos.
Afinal, o que são os punhos perto da força das palavras?