O que vamos levar da vida é a roupa do corpo e as nossas realizações. O resto fica. O resto é o resto.
Vamos levar o quanto amamos, o quanto nos amamos, o quanto confiamos em nossa verdade pessoal.
Mesmo que você tenha se desentendido com alguém, teve momentos bons. Há uma bagagem de valores e princípios dentro da memória. Nada é inteiramente ruim.
Eu não dependo de nenhum objeto de meu pai para dizer que ele é meu pai, para demonstrar publicamente que ele é meu pai.
O teste genético de paternidade é a saudade que sinto dele, e a saudade que ele sente de mim. Pela saudade, sempre somos parecidos.
Não preciso ter nenhum cebolão antigo dele. Nenhum pincel de barba. Nenhum casaco. Nenhuma abotoadura. Nenhum canivete suíço. Nenhum cachimbo. Nenhum cachecol. Nenhuma caneta especial. Nenhum baú. Nenhuma fotografia. Nenhum diploma. Nenhuma carta.
Herança é o que você recebe de bens materiais após a morte, legado é o que você absorve de ensinamento durante a vida. Herança pode ser gasta ou extraviada, legado jamais se perde — sua essência é espiritual.
As maiores provas de que sou filho dele residem no interior de meu temperamento, prescindindo de presentes e de talismãs.
Tenho dele a risada larga, bonachona, uma gaita que impulsiona o rosto para trás.
Tenho dele o jeito de cortar tomates na tábua, horizontal, absurdamente errado e divertido.
Tenho dele o ímpeto de colecionar Quixotes, veleiros em garrafas, esculturas de madeira, e espalhar os objetos pelas estantes.
Tenho dele a mesma malandragem de dizer que estava pensando na pessoa quando ela me liga.
Tenho dele a mesma compulsão de acreditar que posso fazer mais alguma coisinha antes de sair de casa, o que acarreta atrasos a meus compromissos.
Tenho dele as mesmas distrações ao ouvir música, as mesmas explosões de canetas nos bolsos.
Tenho dele a mesma terapia de curar a raiva com uma caminhada pelo bairro.
Tenho dele a barba da juventude, as brotoejas do pescoço e a tendência de levantar as golas no inverno tipo James Dean.
Tenho dele a adoração por sentar em balcões de lanchonetes e experimentar pastéis em cidades estranhas.
Tenho dele as pernas tortas e os olhos puros da coragem.
Tenho dele a vontade de cheirar o cangote no abraço.
Tenho dele o vício de riscar livros e escrever diários por códigos.
Tenho dele o costume desagradável de gemer diante de um prato favorito.
Tenho dele igual deslumbramento quando vejo a imensidão do mar ou do pampa — e entoo um "amém" da infância.
Meu pai está espalhado pelo meu caráter. Dispenso a necessidade de qualquer utensílio para fazê-lo presente. Nem uma vírgula emprestada. O que é um suvenir para quem tem o amor?
Ele está invisível e forte como o vento em minha respiração. O que é sopro de um ou de outro, isso não sei, emerge um sopro quente e totalmente misturado.
Quando o vejo, eu me identifico. Quando me vê, ele se reconhece.
Meu pai, aos 83 anos, autor de cem livros, será patrono da Feira do Livro de Porto Alegre neste ano, a partir de 28 de outubro, sucedendo-me maravilhosamente, por um capricho do destino. Não é que fui homenageado antes dele, eu apenas guardei lugar.