Annie Ernaux, 82 anos, criou um novo gênero: autossociobiografia ou autobiografia impessoal.
Dissolveu as fronteiras entre o pensamento e a escrita. O que acontece em seu corpo acontece no mundo, o que acontece no mundo acontece também em seu corpo. Descreveu a França na segunda metade do século 20 falando de si despudoradamente, corajosamente, processando os seus lutos, os preconceitos que sofreu, as perdas entre os mais próximos, as dores de ser mulher independente que buscava o livre pensar e não queria um marido como cabide.
“No chão, debaixo de um pôster com os dizeres ‘Uma mulher sem homens é um peixe sem bicicleta’, esquadrinhávamos nossas vidas, acordando do torpor conjugal, e sentíamos que era possível largar marido e filhos, nos desligar de tudo, e escrever coisas cruas.”
Nenhuma decoração resiste à passagem de sua letra. Nenhuma aparência. Foi uma das leituras mais impressionantes de minha estante.
Para Annie, não existe verdade inferior quando é uma verdade interior. Ela bebe antes de ter sede, ela come antes de ter fome, ela deseja antes de amar alguém. Ela registra o antes de tudo: a gênese da modernidade.
Os títulos despojados e franciscanos de seus livros disfarçam o conteúdo vibrante: Os Anos, O Lugar, O Acontecimento.
Em Os Anos, a autora, já professora, enfrenta a morte do pai, dono de um restaurante no interior da França, num vilarejo onde encontrava-se com facilidade gente mais infeliz do que a própria família e ninguém usava palavras novas para substituir as de sempre.
Ela volta ao enterro para enxergar o defunto paterno como um pássaro deitado, tão diferente de quem conheceu no convívio miúdo. Ela descreve o local em que foi criada, o seu ponto de partida, detalhando o impacto da transição do trabalho rural para a industrialização na comunidade. Seus parentes vinham da lavoura, eram massacrados pelas fábricas e saíam das greves para tentar a sorte no comércio.
Um dos maiores orgulhos do pai se resumia a dizer para a filha intelectual: “nunca te fiz passar vergonha”.
Por sua vez, em Os Anos, Annie retrata o seu período de formação e consolidação universitária em Paris, dos 16 aos 44 anos, revelando com argúcia e lirismo as mudanças de comportamento do consumidor. Tempo de progressão material e pasmo existencial, em que os armazéns com os produtos atrás do balcão davam lugar aos supermercados, permitindo aos clientes tocar na mercadoria antes de comprar.
As transformações de hábitos se mostravam tão radicais que interferiam no autoconhecimento e na imagem que cada um guardava de si. Um exemplo do baque era ouvir o seu timbre no gravador, e assim escutar a sua voz alheia.
Se na adolescência de O Lugar Annie tinha a certeza de não ser a mesma pessoa a cada ano, agora ela se sentia imóvel perante uma realidade em mutação.
No pequeno e dolorido O Acontecimento, que inspirou filme homônimo, a escritora confessa seu desamparo para fazer um aborto e permanecer estudando e morando em um pensionato. Não teve ajuda nem do ficante, nem de nenhum colega. Ela não escreve os nomes reais de quem não a amparou, não para proteger a privacidade deles, mas por não acreditar que, tamanha a indiferença, eles realmente existam em algum lugar.
Para quem almejava desaparecer no papel, ser transparente ao envelhecer, o Nobel de Literatura será um grande obstáculo ao propósito de Annie Ernaux.