Minha esposa mineira teve três choques culturais ao morar no Rio Grande do Sul: o frio, que achou muito mais severo do que acreditava, a ponto de dormir com bolsas de água quente; o verão, que ela considerou pior do que o inverno, sem trégua na sombra e úmido o suficiente para desmaiar as lagartixas nas paredes; e a fumaceira aos domingos, com as chaminés formando nuvens de churrasco no céu da capital.
Tanto que ela definia o domingo já na cama, pelo cheiro afrodisíaco de assado. Não precisava consultar o calendário.
Então, imagine o que ela pensou do Acampamento Farroupilha, que completa 40 anos e vai até terça-feira. O tema deste ano é Etnias do Gaúcho: Rio Grande, Terra de Muitas Terras.
Enlouqueceu de estranheza quando atravessamos o pórtico de madeira do Parque Maurício Sirotsky Sobrinho (Harmonia).
Para ela, era como um elo perdido, um set cinematográfico de O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo. Só faltava encontrar o Tarcísio Meira para uma selfie.
Beatriz não sabia para onde olhar. Eu a percebi completamente desbaratinada, assustada com os cavalos passando e as tropas de gaúchos pilchados a caráter.
Todo turista vira uma criança perguntadeira no Acampamento.
— O que é aquela pira?
— Chama crioula. Representa a nossa coragem. Vem do interior do estado, pelo litoral, trazida numa procissão de cavaleiros.
— Tocha olímpica?
— Quase isso. Nosso esporte é comer bem.
— O povo está andando com faca na cintura?
— Sim, amor. Mas não tem perigo nenhum. É para o churrasco. A cada final de semana, são consumidos 60 mil quilos de carne.
— O que são essas casinhas?
— Piquetes levantados para a festa, são 230 pelo parque inteiro.
— As pessoas dormem nos piquetes?
— Tem gente que abandona a sua casa para passar catorze dias vivendo aqui. É um Woodstock gaudério, com shows regionalistas à noite.
— Tipo noite do pijama para adultos?
— Só que é o dia da bombacha.
— Tipo festa junina?
— Não diria dessa forma, ninguém tem chapéu de palha e roupas esfarrapadas.
— O 20 de setembro comemora o final da Revolução Farroupilha?
— Não, amor, o início. Nós perdemos a guerra separatista contra o governo imperial, e apenas nos interessa lembrar o começo. É como uma história de amor: ninguém quer se lembrar do final, unicamente do princípio feliz.
— O que são esses cantadores?
— Trovadores, pajadores, recitam versos de improviso. Nosso maior nome foi Jayme Caetano Braun, que chegou a traduzir a Bíblia para o nosso dialeto.
— Como assim?
— Desse jeito: “A maior das gauchadas/ Que há na Sagrada Escritura,/ Falo como criatura,/ Mas penso que não me engano!/ É aquela, em que o Soberano,/ Na sua pressa divina,/ Resolveu fazer a china/ Da costela do Paisano!”.
— São repentistas?
— Semelhantes, porém nossas rimas são mais quebradas e nosso ritmo mais discursivo, declamado.
Filamos picanha de um CTG, comendo as lascas com a mão, sem nenhum pratinho, depois esquecemos que estávamos com os dedos sujos e nossos rostos ficaram engordurados de carinhos involuntários. Dançamos chula e eu errei mais os passos do que ela, que já cirandava o vestido como uma prenda veterana.
Talvez tenha sido a experiência mais estranha e fascinante do nosso casamento, até porque jamais precisei explicar o que para mim parecia natural. Enxerguei, pela primeira vez, os nossos festejos com os olhos emprestados de Beatriz. Não quero devolvê-los. São olhos mais bonitos do que os meus. Olhos cheios de novidade.