Nem sempre o casal que se ama pode ser enterrado junto. E não é por falta de amor.
Eu fiquei sabendo, nesta semana, que a minha lápide não poderá estar ao lado da lápide de minha esposa. Não dividiremos o jazigo. Por mais que tenhamos um pelo outro irrestrita devoção.
Estávamos falando de seguro de vida no almoço, plenos de saúde, felizes, rindo, quando, de modo inconsequente e repentino, comentei para Beatriz o meu desejo de ser enterrado em Porto Alegre.
Tenho o mapa da capital gaúcha tatuado nas minhas costas, a primeira cartografia do lugar, datada de 1772.
Eu fiquei sabendo, nesta semana, que a minha lápide não poderá estar ao lado da lápide de minha esposa.
Em relação à cidade, guardo uma diferença exata de dois séculos. Em outubro de 2022, completarei 50 anos nos 250 anos de Porto Alegre.
A minha escrita inteira se desenvolve pela luz, pelo sotaque, pelo espaço porto-alegrense, onde criei os meus filhos e fui criado, onde aprendi a caminhar, a falar, a abraçar, a amar, a admirar o vento forte nas árvores, o sol espelhado no rio Guaíba, as golas verdes e capuzes cinza dos morros no inverno e a chuva absolutamente inclinada que dribla as sombrinhas mais firmes e retas.
Minha despedida será aqui, para reunir os meus amigos e celebrar a história de um menino feio, com diagnóstico de “retardo mental” na infância, alfabetizado pela mãe em casa, fortemente atraído pela beleza das palavras.
Perguntei para a minha esposa, que é mineira:
– Você vem comigo?
Ela se ausentou por um tempo em pensamento, cutucou a comida e me disse:
– Não me leve a mal, mas não poderei ir com você.
Foi o primeiro não que recebi dela para um destino em comum, depois de tantos sins: o sim do namoro, o sim do casamento, o sim de dividir o teto, o sim da família.
Juro que me assustei um pouco com o desvio de minha idealização, com a encruzilhada surgindo num caminho que julgava único e natural, com a dissidência no meio das convicções de repouso derradeiro.
Porque eu me vejo envelhecendo com ela, com o buquê grisalho de seus cabelos em meu colo, ambos se ajudando a levantar da cama, apoiando-se nas lembranças e sobrepondo as mãos e as alianças nas barras laterais das escadas.
Assim, também me enxergava na mesma campa ou parede no fim de nossos tempos, repartindo as fotos ovaladas, o sobrenome, a saudade, as heras e os vasos de flores deixados pelos nossos parentes, que seriam trocados quinzenalmente.
Notando a discrepância entre nós quanto ao testamento do corpo, questionei onde ela gostaria de ser enterrada.
Ela me respondeu com doçura e me deu um motivo de apego para amá-la ainda mais:
– Em Belo Horizonte. Não posso deixar a minha mãe sozinha lá.
Fazia sentido. Ela era agora mãe da memória de sua mãe, cuidadora do seu legado.
Clara havia falecido seis anos atrás e não contaria com ninguém por perto para continuar a Ave-Maria do rosário.
Beatriz rompia com qualquer propósito egoísta. Mesmo depois da morte materna, ela ainda se preocupava com a solidão da sua mãezinha, com o isolamento da sua mãezinha, em oferecer companhia.
Eu já me orgulhava da esposa que eu tinha. Passei a me orgulhar da filha que ela demonstra ser por toda a eternidade.