Somente no bairro Sarandi, na zona norte de Porto Alegre, 26 mil pessoas foram diretamente afetadas pela enchente de maio. É como se fosse toda a população de Imbé, ou então de Ivoti. A água chegou ao segundo andar das casas. Rompeu o dique. Derrubou paredes e muros. Deixou marcas nos prédios, e muitas na memória dos moradores. Quase dois meses depois do começo da chuva na Capital, ainda tem lixo amontoado e barro espalhado.
Nessa semana percorri algumas ruas da Vila Brasília. Tenho me acostumado às histórias tristes e a ouvir relatos muito parecidos de quem foi atingido de alguma forma. Sempre me chama atenção que mesmo quem perdeu tudo sente culpa ao reclamar. Os entrevistados começam dizendo que sabem que não são os únicos, ou que tem gente em situação ainda pior. Que não querem ajuda só para si mesmos, mas que querem ser ouvidos.
Na Rádio Gaúcha, ao vivo, estendi o microfone ao Seu Belmiro Prado, de 48 anos, nascido e criado no Sarandi. Ele estava em um galpão, que fica perto da Avenida Dique, quando houve o extravasamento. A parede do fundo do imóvel foi arrastada pela força da água. Ele se salvou, mas perdeu todo o resto.
A família do Seu Belmiro tinha cinco estabelecimentos em portões de garagem, um ao lado do outro. O bazar da mãe, o armazém do pai, a ferragem, a loja de roupas da esposa dele e o depósito de bebidas. Além das moradias no segundo andar. Tudo levado ou perdido. Ele me contou que ainda não conseguiu acesso a empréstimos para recomeçar, já que a informalidade dos negócios é uma realidade nas periferias. A história dessa família pode ser muitas vezes multiplicada. Não temos dimensão do tamanho do problema, em diferentes esferas.
A poucas ruas dali, a diretora de uma escola me contou que na próxima semana os 200 alunos completarão dois meses afastados das salas de aula. O prédio estava sendo limpo e organizado, mas logo vem outro desafio, que é receber e acolher crianças que também perderam tudo em casa, incluindo suas mochilas e materiais escolares.
Eu moro bem longe do Sarandi. Trabalho longe também. Passo esporadicamente pela região e se me largarem lá não vou me localizar sozinha. Ainda assim, e por isso mesmo, utilizo este espaço hoje para dizer que não podemos esquecer do Sarandi. Porque é assim que a população se sente: esquecida. Assim como a Vila Farrapos e o Humaitá, poderia citar outras tantas localidades, de diferentes cidades, onde as perdas deixam essa sensação.
As administrações municipais precisam de planos para isso tudo não se repetir. Com planos, será momento de buscar recursos estaduais, federais e parcerias privadas. Muita coisa nunca vai voltar ao normal que conhecíamos, mas pode ser que aí estejam as oportunidades de melhorar sistemas e moradias. Será preciso esforço e criatividade.