Uma das principais judocas do país na última década, a gaúcha Maria Portela, 35 anos, decidiu trocar de ares. Não, ela não está deixando a Sogipa, mas sim pendurando o quimono.
A partir de agora, a "Raçudinha dos Pampas" vai encarar novos desafios, sempre com a coragem e a determinação que a levaram a conquistar duas medalhas de bronze nos Jogos Pan-Americanos, dois títulos do Campeonato Pan-Americano, a medalha de ouro no World Masters e mais de uma dezena de pódios em diversas competições internacionais, incluindo o bicampeonato do Mundial Militar.
— Chegou o momento de dizer tchau para as competições internacionais. É o momento de encerrar a carreira como atleta profissional. Eu vislumbro outras atividades e essa é uma etapa que se encerra. É decisão muito bem pensada. Não foi só racional, foi emocional. Pensei, refleti todos os aspectos e chegou o momento mesmo de encerrar essa jornada como atleta — disse a judoca nascida em Júlio de Castilhos, que cresceu em Santa Maria, de onde saiu para ganhar o mundo e participar de três edições dos Jogos Olímpicos.
Maria Portela recebeu os veículos do Grupo RBS, na última segunda-feira, na Sogipa, para falar sobre essa decisão e participar do último treino oficial com a equipe. O técnico Antônio Carlos Pereira narrou aos demais judocas a trajetória de Portela no clube.
Para Kiko, ela é o exemplo a ser seguido. Tricampeã mundial e dona de três bronzes olímpicos, Mayra Aguiar era uma das mais emocionadas e deu um longo abraço, entre lágrimas, na agora ex-colega de clube e seleção.
Confira a entrevista exclusiva para GZH e RBSTV
Como está a sua cabeça hoje, com a decisão pela aposentadoria?
Já esteve pior. Hoje estou mais tranquila, segura dessa decisão. Estou muito feliz, de olhar toda minha trajetória e perceber tudo que foi construído, o legado que deixo nessa categoria (até 70kg) e fico muito tranquila que me doei 100%, tudo que esteve ao meu alcance eu fiz. Isso me traz segurança, tranquilidade de encerrar. Uma gratidão gigante de tudo que o esporte me proporcionou, as pessoas ao meu redor, que estiveram em cima e fora do dojô, aqueles que torceram, me apoiaram, me incentivaram, a Sogipa, a Confederação (Brasileira de Judô) e o Governo Federal, através do Bolsa Atleta.
Como você foi trabalhando essa ideia de aposentadoria do esporte?
Eu sempre fui atleta. Se tu me perguntar, é o que fiz a vida toda. Foram 15 anos de seleção brasileira, três Jogos Olímpicos consecutivos. Não foi algo que acordei e logo acabou. Quem me dera fora fosse tão simples e fácil assim. Acredito que ainda estou num processo, a aceitação está ok, já aceitei que é o que quero fazer neste momento. Mas desde Tóquio, depois de tudo que vivenciei, de como foi, a preparação, a pausa pela pandemia, depois a preparação acelerada pra lutar e estar na melhor performance e o fechamento foram as lutas. A primeira foi muito rápida e a segunda, onde não tem o que eu possa dizer que eu poderia fazer. Enfim, desde lá tirei férias, voltei a treinar. Pouco antes do Mundial do ano passado machuquei o joelho, fiz cirurgia e tive um mês pra me recuperar, um para me preparar e isso foi mexendo muito comigo. Fui para o meu 10º Mundial e não consegui a medalha individual, que era uma das coisas que eu almejava tanto quanto uma medalha olímpica. Eu tenho outras medalhas, sou bicampeã mundial militar, tenho da competição por equipes(Mundial) e cheguei muito perto do individual, mas sempre faltou um pouquinho e isso mexeu muito comigo, não consigo explicar de outra maneira. Depois do Mundial, eu estava renovada e não precisava tirar férias, mas tirei de novo. Treinava um mês e não estava com a mesma motivação. No começo do ano eu machuquei meu cotovelo, provavelmente teria de passar por uma cirurgia e isso mexeu comigo. Parei para refletir e talvez fosse o momento de encerrar a minha contribuição como atleta para o judô e trabalhar de outro lado para somar dentro do esporte e não mais ali em cima do Shiai Jo (área de competição), competindo e representando o Brasil. Mas quando decidi, não foi algo ok. Fiquei duas semanas sem sair de casa, refletindo e vendo como eu iria fazer, e se realmente era isso. E a partir disso eu comuniquei ao meu treinador, as pessoas mais próximas e, com pesar, entenderam, aceitaram. E aos poucos fui trabalhando isso e, quando vim assistir treino, eu não estava mais treinando, pensei que iria sofrer muito. E eu não senti isso, agi com tranquilidade e vi que estava tudo ok e que conseguiria prosseguir. Claro que é um processo. Eu não estou mais treinando como estava antes, é diferente. Mas eu olho por um lado positivo porque toda minha experiência eu vejo como uma oportunidade de fazer muito para atletas que estão chegando. Acredito que possa somar com tudo que aprendi e vivenciei em mais de 15 anos de seleção e a vida inteira em cima do dojô, acho que tenho um pouco de experiência para compartilhar e esse é o meu desejo hoje. Não quero trabalhar com outra coisa.
E qual será o caminho profissional agora?
Como eu vou fazer isso ainda não sei, mas eu vislumbro trabalhar como treinadora. Eu estou trabalhando num projeto, a questão mental sempre foi muito importante pra mim e foi algo que quando eu comecei a trabalhar fez uma grande virada nos meus resultados. Eu estou trabalhando numa mentoria (ensinamentos dados por um mentor), ainda estou montando isso e também estou estudando para fazer processo de coaching. Essas questões mais mentais para ajudar os atletas não só na parte técnica, mas também na psicológica, eu sofri muito com isso e depois que eu percebi que isso era parte fundamental dentro do processo para os meus resultados eu decidi trabalhar. Existe um caminho, agora é estudar bastante. É usar uma faixa branca novamente, são muitos anos usando uma faixa preta, mas é botar a faixa branca e aprender e estou aberta a isso.
E o que a Maria Portela deste 1º de março diria para aquela menina que começou lá atrás em Santa Maria?
Eu diria muito obrigado. Porque eu sempre fui uma pessoa corajosa. Enfrentei os desafios, não só com as gigantes que eu lutava, mas também dentro do sistema, dentro de mim e eu agradeceria também por toda a abdicação do tempo com a minha família, do lazer, de tudo que abdiquei em prol de performar. É isso, sabe, tenho certeza que em todos os aspectos eu me entreguei 100%, todas as pessoas que me viram e acompanharam, elas viram isso. Muitas vezes o resultado não reflete quem realmente a gente realmente é. E é isso que acho mais brilhante dentro do esporte. Não tem como tu definires, a pessoa pode ser julgada e muitas vezes fui julgada pela minha estatura, que não conseguiria alcançar e fui lá e fiz, porque sempre acreditei. Eu sempre tive uma fé gigante que se Deus me colocou nesse esporte, começando num projeto social (Projeto Mãos Dadas), no interior do Estado (Santa Maria) e três Olimpíadas e hoje saindo por escolha, como a melhor do Brasil e deixando aberto pra elas conquistarem agora, mas com uma segurança, é muito leve de saber que eu conquistei tudo isso. É sentimento de gratidão pelo que fiz, tudo que me proporcionaram também, porque ninguém chega a lugar nenhum sozinho. É um desafio treinar com quem está sob pressão o tempo inteiro. As pessoas que treinaram comigo, me ajudaram a evoluir, que tiveram paciência de cair pra mim todos os dias, os treinadores que tiveram paciência porque tenho um gênio bem forte, de me corrigir, de estar ao meu lado mesmo quando os resultados não estavam acontecendo. Não só no abraço quando es estava vencendo. As pessoas que investiram. Lembro quando cheguei na Sogipa em dezembro de 2010 eu não era cotada para estar nos Jogos Olímpicos de 2012. Em um ano e meio eu consegui a vaga, como a oitava melhor do mundo. É muito importante as pessoas apoiarem teus objetivos, sonhos. Eu, Maria, sou muito grata por tudo. Se tu me perguntar “se faria alguma coisa diferente?”, eu só me permitiria um pouco mais, não seria tão crítica comigo, porque eu fui muito. Mas eu entendo porque isso exigiu, é alta performance. Para me manter tantos anos como a número 1 (do Brasil), eu precisava fazer isso (ser crítica). Só agradecer por tudo isso, a minha família, não tenho palavras, foram meu grande pilar. Eu confio no propósito que Deus me colocou através do esporte. E a minha família, foram eles que estavam sempre sofrendo, é o vínculo mais forte, mais próximo.
Dificuldades no caminho não te assustaram. Sair do projeto social, a estatura, ser mulher atleta no Brasil. O que mexeu contigo que te fez continuar e que agora te faz acreditar numa nova etapa?
Vou colocar a faixa branca novamente. Mas acredito que sempre temos escolha. As coisas sempre serão desafiantes e tu pode escolher ficar se vitimizando, reclamando ou olhar para o lado positivo e o aprendizado e entender como pode fazer diferente. Sempre busquei esse lado, o de entender que às vezes a gente pensa que tem o controle das coisas e não tem. Mas tem um aprendizado por trás e se eu conseguir absorver isso, talvez ali na frente eu não repita o mesmo erro. Eu até posso errar, mas ele não será o mesmo e isso vai gerar um novo aprendizado e isso me move, a vontade de a cada dia ser melhor, de ir tirando versões e a cada vez encontrar a melhor versão da Maria. E quem acompanha a minha trajetória pode perceber isso. Desde o início até hoje, eu fui me moldando e buscando a minha melhor versão, como posso aprender. É fácil? Não é não, mas se eu ficar quiser ficar me vitimizando também não será fácil. Se ficar “não ganhei a medalha olímpica, meu Deus”. Mas eu tive três oportunidades e não tenho o que reclamar. Só agradecer o esporte. O judô me transformou, me deu oportunidades. Eu vejo mais os ganhos, que os tropeços no meio do caminho.
Vai seguir em Porto Alegre e na Sogipa?
A princípio, sim, sou gaúcha. Eu não quero me afastar da minha família nesse momento, apesar de eles morarem em Santa Maria. Eu pretendo continuar aqui. Ainda não tenho nada certo, mas estou estudando a questão do coaching, a mentoria. Mas se me perguntar “se eu gostaria de trabalhar aqui na Sogipa?”: com certeza, mas não tenho essa proposta ainda. Fica a dica. Eu tenho a agradecer demais esse clube que me abraçou, quando ninguém acreditava em mim. São 12 anos de Sogipa. Minhas três Olimpíadas foram aqui e seria o ideal continuar. Estou feliz por ter começado a minha jornada olímpica aqui e também estar encerrando aqui nesse clube fantástico. O sensei Kiko é como se fosse um pai, um gestor em que me espelho muito na visão que ele tem. Quem sabe um dia eu possa ser parecida com ele, porque ele é brilhante e os resultados falam por si só.
Maria, um ex-jogador de futebol argentino, Alfredo Di Stéfano, que morreu em 2014, quando se aposentou, disse "Gracias, vieja" — "obrigado, velha", em português, referindo-se à bola. O que você diria para o Dojô?
Eu poderia dizer que aprendi muito aqui, com as pessoas que passaram por aqui. Eu vivi alguns ciclos, foi renovando os atletas e eu continuava aqui. Eu aprendi com os treinadores, a parceria de todos, o trabalho em equipe. Aprendi com todas as quedas, muitos choros, mas também muita alegria. Tem muita coisa marcante, muito aprendizado de verdade. E se eu pudesse escrever uma frase aqui “verás que um filho teu não foge à luta”, assim como tenho tatuado, é o que eu acredito. Independente dos desafios, a gente não pode fugir à luta, tem que continuar, persistir e acredito nisso.
E a sua mãe, dona Sirlei, que criou os três filhos sozinha – o pai de Maria faleceu quando ela tinha apenas seis anos de idade
Minha mãezinha é minha maior referência. As pessoas me chamam de “A Raçudinha” e eu brinco que ela é a “dona raçudona” porque essa vontade de vencer, superação, resiliência, vem tudo dela. Ela sempre me deu aquele apoio. Quero agradecer a sensei Aglaia Pavani e o sensei Caceres, que foram as pessoas que apresentaram o judô. Se não fosse eles acreditarem em mim não teria tido toda essa jornada.
Qual o principal momento da sua carreira?
É muita coisa pra escolher um. Vou escolher uma Olimpíada, a mais marcante foi a última mesmo (Tóquio-2021). O que vivi lá foi surreal. Em Londres, eu tive grande aprendizado, mas era pesado. Em Tóquio foi diferente. E um momento muito marcante foi uma medalha em Tóquio-2015, meu bronze no Grand Slam, uma competição muito tradicional, e foi ali que conquistei minha classificação para o Rio-2016 e eu me lembro que estávamos eu mais três japonesas (no pódio), isso foi muito especial, porque o Japão é o berço do nosso esporte e eu estar com as japonesas foi muito marcante pra mim.
E o mais difícil?
Eu acredito que foi Londres. Porque eu quase desisti de tudo lá. Porque deu um branco, foi uma questão que eu não trabalhei o psicológico e foi a mais doída. Tóquio doeu também, mas sabe quando tu entrega e não depende da gente? Então eu acredito que ali, pudesse mudar uma atitude ou outra dentro, mas não tem como pontuar, porque é feeling, é troca.
Enquanto a gente conversava aqui, o ginásio foi enchendo porque vai começar o treino. Não sei se você reparou em volta ou como judoca estava bem concentrada aqui na entrevista. Vai sentir falta desse clima?
Não digo que vou sentir falta do treino, mas do clima, do convívio sim.
Confira o cartel de Maria Portela
Jogos Olímpicos
- 2012 – eliminada na 1ª rodada
- 2016 – eliminada na 2ª rodada
- 2020 – eliminada na 2ª rodada
- 2020 – eliminada com a equipe brasileira na repescagem
Jogos Pan-Americanos
- 2015 – Medalha de bronze
- 2011 – Medalha de bronze
Campeonato Mundial
- 10 participações - melhor posição: 7º lugar em 2013/17/21
World Masters
- 6 participações - medalha de ouro em São Petersburgo-RUS em 2017
Grand Slam
- 3 medalhas de ouro (Moscou-2012; Ecaterimburgo-2018 e Tbilisi-2021)
- 3 medalhas de prata (Baku-2016; Abu Dhabi-2016 e Ecaterimburgo-2019)
- 5 medalhas de bronze (Rio de Janeiro-2011; Tóquio-2015; Abu Dhabi-2017; Brasília-2019 e Antalya-2022)
Grand Prix
- 2 medalhas ouro (Abu Dhabi-2012 e Tbilisi-2017)
- 3 medalhas de prata (Düsseldorf-2012; Qingdao-2012 e Antalya-2019)
- 5 medalhas de bronze (Ulaanbaatar-2014; Zagreb-2014; Tashkent-2014; Havana-2016 e Almada-2022) Maria Portela anuncia aposentadoria e relembra: "Enfrentei os desafios, não só com as gigantes que eu lutava, mas também dentro do sistema"
Etapas de Copa do Mundo
- 4 medalhas de prata
- 4 medalhas de bronze
Campeonato Continental
- 2 medalhas de ouro 2012/20
- 3 medalhas de prata 2009/11/19
- 2 medalhas de bronze 2015/22
Open Continental
- 1 medalha de ouro
- 7medalhas de prata
- 5 medalhas de bronze
Jogos Mundiais Militares
- Ouro (individual e equipe) em 2011
- Campeonato Mundial Militar
- Ouro (individual e equipe) em 2013
- Ouro (equipe) em 2015
- Prata (individual) em 2015
- 346 lutas entre 2008-2022
- 209 vitórias
- 137 derrotas
- 60,4% de aproveitamento
**Dados da Federação Internacional de Judô (IJF) e do JudoInside